Quando falamos de comboios está demasiado presente na nossa memória o filme de Fred Zinneman com Gary Cooper e Grace Kelly Agostinho Lopes
Ao falar de transporte ferroviário é inevitável “ver” o “Serviço combinado com a CP” que muitos autocarros/camionetas afixavam nos beirais do tejadilho (ainda muita bagagem aí viajava!), durante décadas! E é inevitável falar de comboios quando o PS apresenta um Projecto de Resolução que “Recomenda ao Governo a aprovação do Plano Ferroviário Nacional”, e em que se propõe, entre outras coisas, repor/retomar/recompor o que o PS e o PSD e a política de direita andaram a fazer durante 50 anos: liquidar o caminho de ferro e o transporte ferroviário em Portugal.
Em Portugal muitas vezes os comboios apitaram três vezes antes de lhes cortarem o pio, isto é, antes de fazerem a última viagem numa via férrea acabada de ser desactivada, encerrada. A Revista do Expresso de 07MAI24 trouxe um interessante artigo de Diogo Ferreira Nunes, contendo um notável repositório de informação sobre o recuo do transporte ferroviário em Portugal.
O título anuncia, em síntese perfeita, esse balanço: “40 anos de marcha atrás nos comboios”, balanço que o destaque completa: “Nas últimas quatro décadas, Portugal perdeu mais de mil quilómetros de ferrovia e os investimentos ficaram concentrados no litoral. Cavaco Silva é apontado como o principal responsável pelos fechos de linhas, mas os encerramentos já estavam planeados no tempo do Bloco Central” (Governo PS/PPD-PSD, Mário Soares e Mota Pinto). Julgo que poderíamos alargar para os quase 50 anos o triste período do “ferrocídio”, pois o encerramento, por exemplo da Linha do Sabor (Pocinho-Moncorvo/Duas Igrejas-Miranda do Douro), começou a acontecer em 1979 durante um Governo da AD (PSD/CDS/PPM) de Sá Carneiro e Freitas do Amaral, mesmo se “oficialmente” só foi decretado em 1989. Para sermos rigorosos na definição de responsabilidades políticas e em termos de legislação, o diploma primacial da liquidação da via férrea foi o Decreto-Lei 63/83 de 03FEV83 do Governo AD de Pinto Balsemão, aliás já demitido quando o fez publicar. E acrescente-se que esta política tinha tido já (como lembra o autor do artigo) uma 1.ª versão como fonte inspiradora antes do 25 de Abril, com o Decreto-Lei n.º 80/73 do Governo de Marcelo Caetano, que no Art.º 2.º, alínea c) dizia preto no branco: “A supressão de linhas e ramais que se não mostrem social ou economicamente justificáveis (…)”.O artigo precisava de uma segunda parte para um outro desenvolvimento da vertente política e social que envolveu o crime cometido contra o país e, particularmente, contra as populações do interior (Trás-os-Montes, Douro, Beiras e Alentejo); das opções políticas e interesses económicos que o sustentou e das “habilidades” e mentiras governamentais que o consumaram. E também da resistência e lutas contra o encerramento de diversas vias férreas. No fundo, explicitar/explicar a política ferroviária que sucessivos governos do “arco da governação” PS, PSD e CDS, conduziram e concretizaram nos 50 anos depois de Abril, com o objectivo de tirar o pio aos comboios em mil quilómetros de ferrovia, transformados em ciclopistas para compensar, ao que se supõe, o crime ambiental… Senão, fica uma enorme interrogação nas mentes dos que leram o artigo de Diogo Ferreira Nunes: mas porquê? Como? O que justifica o encerramento de mais de 1000 quilómetros de via férrea e a destruição de um um imenso capital público?
Recordar que o argumento primeiro (e falso) foi sempre a viabilidade económica da exploração ferroviária dessas linhas (no período pós-25 de Abril). E não é de estranhar que surja, em torno de um empréstimo do Banco Mundial negociado pelo Governo AD/Sá Carneiro/Freitas do Amaral, um Plano Nacional de Transportes em que os encerramentos estavam previstos (1). Sem esquecer um Relatório para a NATO de 1981, em que J. Luís Nunes, PS, e Ângelo Correia, PSD, afirmavam “sem interesse estratégico e viabilidade económica” as linhas de via estreita. Estas ideias tiveram depois formulações, como as avançados pela CCRN de Valente de Oliveira numas “célebres” Linhas de Desenvolvimento da Região Norte, sobre não ser a ferrovia “o sistema de transportes mais adaptado à região”. Até chegaram a falar da necessidade de acabar com os comboios por causa dos incêndios florestais/rurais que provocavam – a pequena contradição foi que depois de acabarem com os comboios os incêndios agravaram-se!
Todo este processo foi levado a cabo com uma “espécie” de plano de encerramento de vias férreas: degradação progressiva e acelerada da qualidade e segurança do transporte, fecho e desactivação de trechos de via, interrompendo a continuidade da linha primitiva, a redução do número de composições e desadequação de horários, a falta de articulação das ligações horárias, o número de acidentes, etc., etc. Sem nunca esquecer o continuado agravamento do preço dos bilhetes. E muitas mentiras e demagogia com os transportes alternativos, e até com a tentativa de responsabilização dos trabalhadores ferroviários e das suas lutas contra o estado de deterioração das composições e serviço, como sucedeu com problemas de abastecimento de adubos ao Nordeste Transmontano. Valeu tudo ou quase…
E enquanto este calamitoso processo se desenvolvia, sob a alta inspiração das políticas ferroviárias neoliberais da UE transcritas em directivas e regulamentos, e sem esquecer as condicionantes que a adesão ao Euro trouxe à gestão orçamental e ao investimento público – liberalização e fim do monopólio público, segmentação e separação empresarial do movimento da infraestrutura ferroviária, privatização de segmentos da actividade ferroviária –, casos do transporte de mercadorias, manutenção, etc. – sucessivos governos do PS e PSD foram proclamando aos ventos sucessivos planos e vultuosos financiamentos do transporte ferroviário. Que em geral, e até hoje, pouco ou nada significaram na dotação do país de um eficaz e potente transporte ferroviário, cobrindo todo o território nacional. A sua imagem de marca é a derrapagem por anos e décadas dos principais projectos de investimento, quer se trate de obra nova, quer de requalificação de vias e infraestruturas já existentes. Isto, sem falar do desastre total da gestão da construção, fabrico, aquisição e manutenção do material circulante. A título de exemplo lembro o Plano de Modernização dos Caminhos de Ferro (1988/1994), aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros n.º 6/88 de 19FEV88 de um Governo PSD/Cavaco Silva, no valor de 100 milhões de contos (mais de 500 milhões de euros); o Plano do 1.º Governo PS/Sócrates, com investimentos na ferrovia tradicional e lançamento do TGV, com 12 novas linhas férreas, no valor de 1,8 mil milhões de euros; o Plano Ferrovia 2020 do 1.º Governo PS/Costa, no valor de mais de 2000 milhões de euros, anunciado em 2016 e conclusão prevista para 2021, que tem nesta altura apenas 15% dos investimentos concluídos e o restante com atrasos superiores a quatro anos (2)! Que dizer do Plano de Mobilidade do Tua, principal contrapartida pela construção da Barragem da Foz do Tua, que previa a reactivação do troço da Linha do Tua, entre Brunheda e Mirandela, e que, com um Memorando de Entendimento entre todas as entidades envolvidas em 2015 (EDP, Agência de Desenvolvimento Regional do Vale do Tua – ADRVT, empresa Autocarros, Barcos, Aeronaves e Comboios Turísticos do Vale do Tua SA) entregava ao privado a gestão desse plano. E agora, apesar das obras de requalificação concluídas há anos e uma locomotiva nova estacionada na Estação de Mirandela, a população afectada pela desactivação da Linha com a construção da Barragem contínua sem transporte! Como se vê planos nunca faltaram…
É por isso que não se pode olhar de forma séria para o Projecto de Resolução que o PS agora apresentou na Assembleia da República. O PS pretende que o Governo AD concretize agora um projecto – o Plano Ferroviário Nacional, PFN –, lançado pelo anterior Governo do PS em fins de 2022, e que depois de um Debate Público (encerrado em Fevereiro de 2023) nunca chegou à Assembleia da República para aprovação final! Não deixa de ser risível que o PFN do PS proponha agora religar pela ferrovia capitais de distrito e outras cidades que durante quarenta anos na companhia do PSD e CDS andou a desligar… Ainda por cima sem corrigir adequadamente o PFN, nomeadamente por ser um plano sem prioridades e calendário, sem garantias e quantificação do financiamento necessário, um plano ferroviário sem comboios e sem ferroviários!
Sabe-se o que o novo Governo AD/PSD/CDS tem programado: uma maior liberalização e maior segmentação das empresas ferroviárias, ao que tudo indica para facilitar novas privatizações. Isto é, vai prosseguir/acelerar a política que conduziu o transporte ferroviário português à situação de desastre em que se encontra.
Obrigatório nesta abordagem uma referência aos que nunca desistiram de lutar contra a política de liquidação da rede ferroviária e do transporte ferroviário em Portugal. As populações atingidas, e recorda-se por muitas outras em várias regiões do país atingidas pela política “ferrocida”, a luta das populações do Planalto Mirandês que, em 1979, se opuseram e evitaram o fecho da Linha do Sabor por alguns anos. A luta dos trabalhadores ferroviários e das suas organizações de classe. A intervenção política e institucional do PCP que, de forma sistemática e persistente na Assembleia da Republica, com dezenas de iniciativas e noutras sedes, incentivou e apoiou a luta das populações e que, pela sua acção directa de denúncia e proposta, contrariou a política ferroviária de direita de PS, PSD e CDS, sempre apresentando propostas de outros caminhos e soluções para a modernização da ferrovia nacional. Não foi agora que o PCP descobriu as virtudes ambientais do modo ferroviário.
(1) Julgo que é o “plano” a que Diogo Ferreira Nunes se refere no seu artigo: “O Governo do Bloco Central mudou a marcha em Outubro de 1983, após receber um plano para desactivar 814 quilómetros de vias ferroviárias (cerca de 25% da rede). Tal implicava o fecho ou redução do serviço em 200 estações – sobretudo no serviço regional – e a saída de 3 500 ferroviários até ao final de 1988.”
(2) Das 16 empreitadas em curso (adjudicadas entre 2019 e 2022) no valor de cerca de 1000 milhões de euros nenhuma delas foi concluída em 2022 e 2023, e em 2024 vamos pelo mesmo caminho!
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