Agostinho Lopes
«Para meditação dos que defendem os círculos uninominais:
mais uma vez o sistema de círculos uninominais do Reino Unido
mostrou a sua intrínseca bondade “democrática” nas eleições do
passado dia 05JUL24. O Partido Conservador com 23,7% dos
votos obteve 121 mandatos (18,6% dos mandatos), o Partido
Liberal Democrata com 12,2% dos votos alcançou 71 mandatos
(10,9% dos mandatos) e o Partido da Reforma UK com 14,3% dos
votos conseguiu 5 mandatos, (0,8% dos mandatos. Ou seja, com
menos 2,1 pontos percentuais na percentagem de votos o Partido
Liberal Democrata tem 14 vezes mais deputados que o da
Reforma. Notável! Porque será que a comunicação social
portuguesa não fala disto??? »
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É notável o que se escreveu (1) a propósito do debate entre os
candidatos à Presidência dos EUA, denominados por alguns de
“maior democracia do mundo”.
“É sintoma de decadência da democracia americana um embate
entre o sociopata Trump e um Biden com neurónios aposentados”
(MJM).
“Se fosse num filme, o debate entre Trump e Biden seria uma
hipérbole da crise das democracia ocidentais. Uma caricatura
ficcional. Mas o filme de terror é real. De um lado temos Trump a
ser Trump: um pirómano e mentiroso compulsivo. (…) Só que o
debate mostrou que Biden é um candidato pior do que um cartoon
da Disney. Os primeiros 20 ou 30 minutos do debate – não vi mais
porque me incomodava ver alguém a fazer aquela figura –
mostraram um velho, com toda a simpatia que a palavra merece,
que não está na posse plena das suas faculdades mentais. O seu
olhar perdido e a forma como tinha a boca, como se atrapalhava a
falar, como não se recordava do que queria dizer ou como
misturava assuntos não familiares a qualquer pessoa que tenha
visto o seu pai ou avô num processo de perda de faculdades
mentais.” (LAC).
“Por trás das aparências, um velho guerreiro vencido por um velho
vicioso que nas andanças políticas é um novo guerreiro, nascido
praticamente em 2016, o que aconteceu perante os olhos do
mundo foi a morte da política do século XX. Ou se quisermos, de
um certo modo de fazer política que durante décadas obedeceu
aos mesmos códigos e regras de civilidade e urbanidade.”
(Excepto, quando valia tudo menos tirar olhos…) (CFA).
Ou seja, no fundamental tivemos de um lado um santinho
envelhecido e do outro o belzebu muito remoçado!
Foi pena que os canais televisivos não se tivessem lembrado de
chamar, para avaliar a prestação dos candidatos, os nossos
comentadores-especialistas em classificação dos participantes em
debates eleitorais. Mas julga-se que as notas não andariam longe
do seguinte: Biden, zero porque não esteve presente, e Trump,
zero por ser um ser maléfico. Isto é um empate absoluto, apesar
de uma tendência positiva para Biden, dada a sua condição de
“velho guerreiro” (CFA), apesar de já não ser o que foi!
Porquê? De que forma? Quem é responsável? Como tal aconteceu
com o farol universal da “democracia liberal”?
O debate para os nossos comentadores foi algo impensável,
impossível, inimaginável e mesmo, ou sobretudo, inexplicável.
Assim a racionalização do sucedido, a compreensão do
acontecimento, a explicação de como os EUA, a sua sociedade, o
seu capitalismo, a sua democracia chegou onde chegou, ficou sem
qualquer resposta e toda a prosa (e foi muita) expendida sobre o
debate traduziu-se em adjectivação mais ou menos agressiva, e
zero em matéria de argumentação substantiva.
Para JPTF, e é dos poucos a fazer um esforço explicativo, a razão
é que “vivemos tempos estranhos”, e é “extraordinário como um
Estado que nos habituamos a ver como um modelo de democracia
liberal tem, de novo, um candidato presidencial como Donald
Trump.” Serão de facto os tempos anormais, esquisitos, fora da
história, ou uma anormalidade o aparecimento de Trump,
Bolsonaro, Milei, Meloni, Le Pen, etc.? Mas JPTF procura justificar
a estranheza dos tempos, e o facto do aparecimento de ovnis
políticos com a “A enfermidade populista da democracia
americana”. O populismo tudo explica sem nada explicar: “Não é
por acaso que a política norte-americana é, nesta altura, a mais
intoxicada no Ocidente pela lógica populista. Nela emergiu uma
estranha e imprevista (lá está a estranheza e a imprevisibilidade)
ligação entre tecnologia, informação, entretenimento, obsessão
pela novidade e pelas audiências e política. Emergiu gradualmente
a partir das últimas décadas do século XX, mas, neste primeiro
quartel do século XXI, adquiriu uma dimensão que a torna cada
vez mais intoxicante da democracia liberal. Tal como a maioria da
geração mais recente de populistas, Donald Trump é um resultado
dessa combinação. Nesse sentido, o seu populismo está
indissociavelmente ligado ao actual “american way of life” e à
sociedade em rede.” Mas que sentido é que isto faz? E então o
Biden, e tudo o resto? O que explica a nascença e a manutenção
dessa “combinação tóxica”! O que explica “as grandes
transformações demográficas, culturais e de valores das últimas
décadas – que acentuaram as diferenças entre as grandes cidades
e Estados da federação das costas Leste e do Oeste face ao resto
do país – até às políticas de identidades que dividiram a
sociedade, passando pelos efeitos negativos e pelas
desigualdades criadas pela globalização.” Como o capitalismo
mais avançado e o “modelo de democracia liberal” apodreceu a
sociedade americana, degradou a democracia e produziu esses
mostrengos, JPTF não o diz.
Outros articulistas são bastante mais directos nas suas canhestras
explicações. É a existência do malvado do Trump, e nada a dizer
quando aparecem seres deste calibre! Aparecem, brotam, surgem,
talvez por geração espontânea! E então este com uma grande
apetência de poder e vontade de vingança, JPP dixit (2). Mas não
está só: para TS, “O anterior Presidente (Trump) sonha com a
vingança contra todos os que, dentro ou fora do seu país, lhe
fizeram frente – é este o seu principal objectivo, para além da
possibilidade de perdoar-se a si próprio pelos crimes que
cometeu.” E MST compartilha: “os Estados Unidos da América, a
“nação indispensável”, o país mais poderoso e venturoso do
mundo prestes a entregar-se nas mãos de um político
inqualificável: ignorante entre os ignorantes, ego demente, boçal,
mentiroso compulsivo, cego de ódio e desejo de vingança.” (arre,
que catilinária!!!)
Mas é evidente que Trump não está sozinho nesta marosca para
dar cabo da “nação indispensável”. Não se esqueçam de Putin
com ou sem conspiração universal! CFA explica: Trump não é dono
de Trump. Quem é? Um sistema difuso de alianças
geoestratégicas e táticas entre os poderes planetários (quem
são?), e na América entre o dinheiro de Wall Street, as indústrias
dos recursos naturais, do petróleo, das comunicações e das
armas, e a sagração da IA (põe o dedo na ferida). A ideologia
libertária de um Musk, um Peter Thiel, um Bezos, ou um
Zuckerberg, dos grupos Meta, Apple, Amazon, Microsoft ou
Alphabet (outra vez o dedo na ferida), os gigantes mais visíveis, é
uma: continuar as experimentações avançadas sem taxação ou
perturbação por estados ou entidades.” Mas não só, e estraga o
que disse: Trump é “A marioneta, que ditadores estrangeiros
podem manipular através dos agentes de influência espalhados na
matrix e no planeta. Putin tem a mão longa (Salazar falava sempre
no dedo de Moscovo!), está em toda a parte (é Deus! ) A China (já
cá faltava!) tem a mão invisível (é o mercado!). Não são os únicos.
O jogo é universal. Neste mundo que nasce a toda a velocidade,
que inebria e anestesia, a imagem de um velho titubeante seria
intolerável.” Para quem? Logo, malandros, sabotaram o debate do
Biden para o pôr fora da carroça... Isto “Não é apenas fumaça”, diz
CF, a propósito do orgulho de Banon (ex-director de campanha de
Trump) de ser um “preso político” no processo do assalto ao
Capitólio: “Os populismos extremistas alimentam-se assim e a
repetição de narrativas desta natureza, um pouco por todo o
Ocidente, revela que as mesmas não são fruto do acaso. Ou seja,
existe uma estratégia pensada à escala global de subversão do
Estado de direito que visa capturá-lo. As mensagens da União
Nacional, em França, da União Cívica, na Hungria, ou do Chega,
em Portugal (e podia acrescentar o Trump, Bolsonaro e etc.),
embora com matizes diferentes apontam todas na mesma
direcção: apelam ao nacionalismo, agitando os problemas da
imigração, pretendem fragmentar a União Europeia e fomentam a
insegurança.” Atenção “Ocidente”, cuidado com a conspiração
populista, certamente apadrinhada por russos e chineses...
Para MST, a responsabilidade cabe toda às redes sociais – ideia
que CFA partilha, mas de forma não tão absoluta – que construiu
um mundo de “ressabiados”. “Desde as aventuras da Cambridge
Analytica na manipulação de vontades e votos no “Brexit”, na
eleição de Trump ou na de Bolsonaro, aprendemos que o célebre
algoritmo se tornou no instrumento perfeito para a formação e
manipulação das opiniões públicas, seleccionando sabiamente a
informação recebida pelos utentes de acordo com a vontade do Big
Brother, assim canalizando as suas opiniões para o sentido
pretendido.” E discorre, “Assim quem viu o debate entre Trump e a
sombra de Joe Biden (…) viu o que seria inimaginável de ver em
qualquer democracia. Esteve ali, indecorosamente exposto, tudo
aquilo que eu considero o resultado fatal da derrota de um mundo
minimamente decente, com valores e pudores minimamente
aceitáveis, face à libertinagem moral e cívica da gente das redes
sociais.” Não se compreende: as redes sociais (que têm a
responsabilidade de muita coisa) são responsáveis pelo estado
mental de Biden? Pela sua indigitação/aceitação pelo Partido
Democrata? Por não conseguirem substituí-lo? E as mesmas
interrogações, com as devidas adaptações, aplicam-se a Trump.
MM mergulha, como sabemos, semanalmente no Expresso na
grande geoestratégia. “Vivemos um período de transição do
sistema internacional.” (É um facto.) Ora “O verdadeiro significado
histórico de Donald Trump é o facto de ele questionar os benefícios
para os EUA da “Pax Atlantica” que será assinalada na próxima
semana na cimeira da NATO em Washington. Para Trump e muitos
americanos à direita e à esquerda, a China é o mais importante
rival estratégico dos EUA. A atual Administração concorda, mas vê
na Ucrânia e na Pax Atlantica a melhor forma de comunicar
estrategicamente (??? O que é isto?) com Pequim. A dificuldade é
que Joe Biden terá de provar nas próximas semanas e meses que
conseguirá fazer uma campanha competente (Como MM?), ganhar
as eleições a Trump e ser Presidente até 2028. Como se regista,
para MM as diferenças Trump/Biden não são muitas... e tem razão.
E qual é a explicação de MM para a situação que vivemos? “Na
realidade, o processo de adaptação norte-americano e dos países
do Velho Continente aos factos políticos internos e externos
promete ser muito mais difícil do que pensamos.” E que factos são
esses MM? E qual a razão das dificuldades? MM não esclarece.
Afinal restou MJM para se aproximar de qualquer coisa que
desvendasse o confuso quadro do debate. Mesmo assim ficou a
meio do caminho. “Porém aquele debate e aqueles dois candidatos
levantam questões mais fundas do que a capacidade de Biden. Ou
quem afinal toma decisões atualmente na Casa Branca (Biden não
é certamente) (…) As questões são mais fundas e dilacerantes. Há
uns anos escrevi nesta página sobre a crise da velha democracia
americana. As instituições desenhadas para o fim do século XVIII,
então visionárias e disruptivas, falham para o século XXI. A
constituição americana depende mais dos incumbentes do que das
instituições na hora de limitar o poder de um protoditador. (…)
Talvez esta dupla subdotada seja um sinal do declínio e queda do
império americano”. E qual a razão para o declínio e queda? MJM
nada acrescenta… não sei se não remeterá para o declínio e
queda do império romano, ou de que os impérios, lá chega o dia,
em que chegam ao fim…
Não é por acaso que não se racionaliza e se argumenta sobre as
causas da situação política (e económica, cultural, ideológica) dos
EUA, em toda a sua complexidade e com todas as suas
contradições, neste iniciado século XXI! O que foi a base da
“tragédia” do debate Biden/Trump, independentemente do que se
seguir e for o resultado das eleições em marcha. As razões
profundas da crise e crises que atingem os EUA e o imperialismo
que continua a suportar. As impossibilidades políticas e ideológicas
dos comentadores de assumirem a crise do sistema capitalista e
da necessidade para os povos, incluindo o povo dos EUA de
superarem o modo de produção capitalista. Os preconceitos em
ultrapassarem os limites teóricos, económicos, políticos e
ideológicos do “idealismo filosófico” e do neoliberalismo. A
impossibilidade de contradizerem o que andam há décadas a
escrever e dizer nos órgãos de comunicação social sobre a
“democracia” americana e o “paraíso na terra” da sociedade
americana, e a intervenção imperialista dos EUA no mundo – por
exemplo, o silêncio que fazem sobre as suas centenas de bases
militares espalhadas por todo o planeta e as dezenas de agressões
militares a países soberanos nas últimas décadas. Pois é, mas a
verdade dos factos é como o azeite….
Mas tem razão CFA quando, observando o debate e o que vai pelo
mundo, afirma que “Os sinos dobram por nós”. Parafraseia
Hemingway de “Por quem os sinos dobram”, mergulhado no
confronto da Espanha Republicana, aliada aos comunistas e forças
de esquerda de todo o mundo, enfrentando as hordas fascistas de
Franco apoiado por Hitler e Mussolini, e a “neutralidade” da social
democracia europeia e americana. Mas podia acrescentar: os
sinos dobram também pela Ucrânia e Gaza, pelo Iraque, Líbia,
Síria, Afeganistão, pelo Yemen. Dobram pelas mortes e destruição
do imperialismo norte-americano, que estrebucha, resiste a todo o
custo contra a perda da sua hegemonia e supremacia planetária.
PS: Para meditação dos que defendem os círculos uninominais:
mais uma vez o sistema de círculos uninominais do Reino Unido
mostrou a sua intrínseca bondade “democrática” nas eleições do
passado dia 05JUL24. O Partido Conservador com 23,7% dos
votos obteve 121 mandatos (18,6% dos mandatos), o Partido
Liberal Democrata com 12,2% dos votos alcançou 71 mandatos
(10,9% dos mandatos) e o Partido da Reforma UK com 14,3% dos
votos conseguiu 5 mandatos, (0,8% dos mandatos. Ou seja, com
menos 2,1 pontos percentuais na percentagem de votos o Partido
Liberal Democrata tem 14 vezes mais deputados que o da
Reforma. Notável! Porque será que a comunicação social
portuguesa não fala disto???
(1) Por ordem alfabética: Celso Filipe (CF), Jornal de Nogócios;
Clara Ferreira Alves (CFA, Revista Expresso; Pacheco Pereira
(JPP), Público; José Pedro Teixeira Fernandes (JPTF), Público;
Luís Aguiar-Conraria (LAC), Expresso; Mª João Marques (MJM),
Público; Miguel Monjardino (MM), Expresso; Miguel Sousa Tavares
(MST), Expresso; Teresa de Sousa (TS), Público.
(2) Ver artigo “Os mais perigosos do mundo, segundo Pacheco
Pereira”, Agostinho Lopes, Expresso online, 10JUN24.
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