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31 de julho de 2024

 REFLEXÕES SOBRE A DEMOCRACIA NA AMÉRICA 

Agostinho Lopes 

EUA, uma democracia onde não há oposição 

REGRAS E COMPLEXIDADE DO SISTEMA ELEITORAL

A perversão da democracia norte-americana não fica só pela intervenção do poder aquisitivo dos dólares, que assim a transforma numa oligarquia. 

A complexidade do sistema eleitoral, referida em artigo anterior, é em si mesma, uma condicionante negativa de uma qualquer eleição. Como pode o cidadão votar em própria, livre e boa consciência se não sabe ou percebe, de forma clara, directa, imediata, poderíamos dizer como uma evidência, as consequências directas do seu voto, do seu acto, escolha eleitoral? 

Mas depois o sistema eleitoral nos EUA para a Presidência da República apresenta outras incongruências. Como sabemos Donald Trump pode perder as eleições contra Kamala Harris, e ainda assim ser o próximo Presidente. Não parece muito democrático mas são as regras. 

Resultado de um sistema eleitoral em que o partido que vence no sufrágio universal pode perder as eleições no Colégio Eleitoral –porque são os delegados eleitos dos Estados que fazem a segunda volta que decidem – e pior ainda, em função, unicamente, do resultado de alguns poucos Estados ditos “swing” (1). 

Como aliás tinha dito o insuspeito Jorge Miranda aquando das eleições de 2020 comentando as eleições de 2016 (“Um sistema eleitoral, um país em crise”, Público, 16NOV20): “Sendo indireta a eleição, compreende-se bem a consideração estado a estado, por se estar numa federação (….) O que não se compreende vem a ser a representação maioritária por estados, que levou a que Hillary Clinton tivesse tido mais três milhões de votos que Donald Trump e não tivesse sido eleita. (…) Está aí uma evidente e profunda crise da democracia e uma crise do próprio sistema constitucional dos Estados Unidos e da própria comunidade política.

”Mas é necessário juntar outros elementos da “idiosincrasia eleitoral” dos EUA. Como há muito acontece com a gestão do recenseamento, a definição da localização e horário das mesas de voto e o desenho dos círculos eleitorais sob o poder e tutela dos governadores e da maioria partidária (republicana ou democrática) em cada Estado.

Escrevia-se no Público em 14AGO21: “Nos EUA, desenhar um círculo eleitoral é uma arte e uma questão de sobrevivência” num longo de artigo de Alexandre Martins, em que se explicava como “Os dois grandes partidos usam os dados dos censos para tentar ganhar eleições.”. E num importante artigo “Salamandras, Expresso, 24OUT20”, Pedro Magalhães explicava com pormenor as “habilidades” eleitorais das maiorias: “os partidos dominantes em cada estado aprovam e aplicam regras eleitorais de acordo com a sua conveniência.” “o número de horas e locais disponíveis para votar são estrategicamente reduzidos nas zonas onde há eleitores que tenderão a votar contra quem está no poder. E na ausência de recenseamento automático e de cartões de identificação emitidos gratuitamente, as exigências colocadas para que se possam recensear e votar acabam por depender também daquilo que mais convém a quem manda. Quanto maiores os requisitos de identificação dos eleitores, menor a participação dos mais pobres e das minorias étnicas.” 

“Depois temos o desenho dos círculos eleitorais. Após cada recenseamento da população é preciso determinar quantos representantes são eleitos em cada estado e as novas fronteiras dos círculos eleitorais que vigorarão durante a década seguinte.” “O resultado previsível é conhecido pelo nome de gerrymandering (termo criado em 1812, em honra do Governador E. Gerry, que desenhou um círculo eleitoral com a forma de uma salamandra!).

Com a ajuda de dados políticos e demográficos e sistemas de informação geográfica, os partidos no poder conseguem fazer com que os eleitores do partido da oposição sejam concentrados no menor número possível de círculos, ao passo que quem governa tenha maiorias, mesmo que apertadas, no maior número possível de círculos. O efeito pode ser estrondoso.” Ou seja, “O resultado é que, de dez em dez anos, em vez de serem os eleitores a escolherem os eleitos, são os que governam e os seus agentes políticos que escolhem os seus eleitores.

”Outro escrutínio obrigatório – até pelos problemas surgidos com a indigitação de Biden e os sarilhos com a sua substituição – hoje é bem sabido como foi resolvido – é o funcionamento do sistema partidário e dos seus dois principais partidos, PartidoDemocrata (PD) e Partido Republicano (PR). O que são? Quem os regula e/ou os tutela? Como funcionam? Para que servem? 

Mas certamente que a primeira constatação é verificar a existência de um sistema político apoiado apenas em dois partidos, mesmo que existam (e existem) outros. Um sistema bipartidário em que apenas esses dois partidos exercem e assumem posições de poder de candidatura e exercício de mandatos, num regime de monopólio absoluto, numa rotatividade na Presidência da República, nas maiorias do Congresso e da Câmara dos Representantes, nos parlamentos, governos e governadores, dos Estados federados. 

Nas eleições para a Presidência da República todo o aparelho político funciona como se houvesse apenas dois candidatos. (2) O sistema consolidado ao longo dos dois séculos de vida dos EUA, fixou as regras do seu complexo mecanismo eleitoral (da Constituição 1787, praticamente inalterado desde a fundação dos EUA, Jorge Miranda dixit), onde se destaca a forma oligárquica do financiamento dos dois partidos e das suas campanhas eleitorais, via doações dos grandes capitalistas do país! A que se junta o suporte e influência dos principais e poderosos meios de comunicação social e indústria cultural, sob posse/tutela de alguns desses oligarcas, que vão do domínio das grandes tecnológicas, passando pelas indústrias dos petróleos, até à indústria do armamento/complexo indústrial-militar. 

É evidente que este sistema bipartidário cobre/absorve/embrulha de facto um regime de“partido único” dada a evidente correspondência e semelhança do projecto político, sistema de valores e princípios, para suportar/preservar/dinamizar a forte estrutura de capital monopolista da economia dos EUA, a sua supremacia imperial no mundo, a acumulação capitalista e o poder das oligarquias. 

A luta, por vezes violenta (as mais das vezes nas palavras e agressões verbais) como acontece nos dias de hoje entre os dois Partidos, correspondendo a fracturas e contradições de interesses na classe dominante e cavalgando fragmentações e estilhaçamentos económico, social, ideológico, da sociedade norte-americana no quadro da crise do sistema capitalista esituação de declínio do império, tende a ocultar a sua identidade genética, convergente na defesa do sistema, mas assegura uma camaleónica diferença para eleitor não ver que o animal é o mesmo. 

Tal sistema bipartidário é no mínimo o completo entorse democrático daquilo que no dito Ocidente é apresentado em geral como um sistemapolítico liberal – com diversos partidos, com projectos políticos distintos, regido por regras e princípios definidos constitucionalmente e regulado por entidades independentes. 

Não é de estranhar o peso desproporcionado na elaboração e formatação política e ideológica que preenche o corpo doutrinário daqueles partidos dos Grupos de Estudo/ThinkTank, as Fundação Soros, Ford, Rockfeller e etc, grupos de pressão movimentados por lobbies empresariais e grupos mediáticos, nomeadamente as Grandes Tecnológicas (ver por exemplo, os 40 milhões/mês de ElonMusk para Trump). 

Inevitavelmente que todo o sistema eleitoral e político dos EUA está hoje dominado, tutelado e percorrido pelas corporações mediáticas e plataformas cuja propriedade se distribui pelos oligarcas do sistema económico. Basta ver a intensa intervenção eleitoral mediática e de “fação” a favor dos dois partidos...

Mas depois há certamente muitas outras interrogações e dúvidas sobre o seu funcionamento: como são escolhidos os seus dirigentes? Quem comanda os aparelhos partidários? Quais os seus estatutos? Como funcionam? Como se seleccionam os candidatos? Quem os fiscaliza? Não se argumente com a existência de umas ditas primárias que claramentetudo permitem a quem domina os partidos. Basta lembrar as primárias nas eleições de 2016 entre Hillary Clinton e Bernie Sanders, e de como este foi “arrumado” num processo tortuoso e nunca esclarecido pela direcção do PD! 

Por outro lado verificarmos a impotência total (pelo menos aparente) da direcção do PD em afastar Biden após o debate com Trump, o que acabou por ser resolvido pela intervenção dos “Doadores”! Ou importantes decisões como a escolha/nomeação/indigitação dos Vice-Presidentes, por escolha dos indigitados/nomeados Presidentes. Aparentemente, para quem está à distância, os dois Partidos são apenas os instrumentos, as escadas, para alcançar o poder, ser candidato com forte sustentação financeira dos doadores! Segundo CFA (4), sem Partidos (o PD e o PR) não há doadores!

No entanto parece ser hoje manifesta a rejeição do bipartidarismo. Em diversos estudos de opinião uma percentagem significativa de norte-americanos gostariam que 3º candidato presidencial, além dos dois apresentados pelo PR e PD. Um estudo da Reuters/IPSO de 25JAN24 indicava que “uma maioria absoluta de americanos (52%) não está satisfeita com o sistema de dois partidos e quer uma terceira escolha.” (3) E Gary LaFree (Prof. Catedrático de Criminologia e Justiça Criminal da Universidade de Maryland) em recente entrevista ao Público apontava o estrangulamento pelo bipartidarismo do aparecimento de outros candidatos, como uma das razões para a violência na sociedade americana. (5)

UM ESTADO DE DIREITO?

Outra interrogação que inevitavelmente ressalta de todas estas informações e comentários é que Estado de Direito são hoje os EUA? 

A simples observação de diversas vertentes da sua política interna e externa, não precisa do actual sarrabulho eleitoral para a justificar. Estamos num Estado de Direito democrático, ou seja um Estado limitado pelo direito e o poder político estatal legitimado pelo povo, mas também um Estado vinculado ao direito internacional, no respeito pelos princípios da paz, da independência nacional, do direito dos povos à autodeterminação, da igualdade entre os povos, da solução pacifica dos conflitos e da não ingerência nos assuntos internos de outros Estados? 

Um Estado que mantém uma prisão política offshore como Guantánamo, onde pratica a tortura, e onde impõe um completo vazio, ausência da legalidade jurídica da sua própria Constituição, negando inclusive as leis e princípios jurídicos que prevalecem no seu próprio território, pode ser um Estado de Direito? Que Estado de Direito é este que não põe cobro à violência civil, social, política, interna, legal (das suas forças policiais e militarizadas como a Guarda Nacional) e ilegal face às suas leis, praticamente desde a sua fundação e exercida sem qualquer limite até aos dias de hoje? 

Um Estado onde a permissividade com o comércio e uso de todo o tipo de armas e a existência de milícias armadas é total. A Ku Klux Klan não é um mito! Que Estado de Direito é este onde a violência civil é uma instituição e onde o Estado tudo parece fazer para a preservar!? O atentado a Trump não foi uma excepcionalidade! “25% dos presidentes dos EUA ou foram mortos ou feridos em tentativas de assassínio”.(5)

Que dizer de um Estado de Direito face ao que veio a lume da situação no Supremo Tribunal Federal (STF)? O que disse a Juíza Sónia Sotomayor que votou contra a decisão da imunidade dos presidentes? “A (decisão) vai contra um princípio fundacional da nossa Constituição e do nosso sistema de governação segundo o qual ninguém está acima da lei”. Se o Presidente “Organiza um golpe militar para se manterno poder? Está imune? Aceita um suborno em troca de um perdão presidencial? Está imune?”.

E textos publicados em Portugal, perguntam se é possível falar de um Estado de Direitoe da separação de poderes face aquela decisão do STF. Escreveu LAC (6): “O principal legado do mandato anterior de Trump é uma maioria reaccionária no Supremo Tribunal que tem exarado decisões que põem em causa os Estados Unidos como uma sociedade decente ( e até como um Estado de Direito, na verdade). Ainda esta semana saiu uma deliberação do Supremo que reconhece uma imunidade criminal ao Presidente dos Estados Unidos tão alargada que o torna praticamente inimputável.” Onde está a tão clamada separação de poderes, separação do poder político do poder judicial, e a independência do poder judicial, quando vemos uma composição do STF completamente determinada pela Presidência da República e uma escolha dos juízes segundo critérios que permitam garantir fidelidade do STF aos interesses de quem os nomeou? 

E MJM (7) conclui que aquela decisão “por arrasto aumentando dramaticamente a esfera de poder de qualquer presidente, faz temer o estrangulamento da democracia americana em caso de nova administração Trump (pergunta-se: só neste caso?).” E confessa “Quase soltamos gargalhadas (amargas) por um dia termos considerado os Estados Unidos o país dos mais apurados checks and balances.”! Quem mais vai amargamente chorar com MJM os ditos e tão celebrados Checks and Balances como expoente do equilíbrio democrático, factores de contrapoderes dos diversos órgãos de soberania do Estado dos EUA??? Haverá muitos certamente…

UMA FÁBULA DEMOCRÁTICA PARA FECHAR

Naturalmente que qualquer leitura do “estado da democracia nos EUA”, mesmo nos aspectos formais, direito e liberdade de voto, liberdade de formação de partidos políticos e da sua igualdade perante a Lei, financiamento pelos seus membros e simpatizantes, e/ou pública, capacidade de se candidatar, liberdade de propaganda, transformação de votos em mandatos, etc – (aqueles que constituem a cartilha dos cultores da “democracia liberal”), precisa também de ser confrontada, reflectida, encaixada, nas suas raízes e mazelas históricas, nas suas minorias étnicas profundamente marginalizadas e descriminadas, numa sociedade de classes, profundamente desigual, no acesso à cultura, manipulada por confissões religiosas (se o Estado Federal aparece em teoria (às vezes não parece!) como Estado laico, muitos são os Estados que são verdadeiramente confessionais…)

Isto é, não é possível, na análise da “democracia norte-americana” esquecer os limites económicos, sociais, culturais e ideológicos da “democracia burguesa” (outros chamar-lhe-ão “democracia liberal”!) e do funcionamento dos seus órgãos e instituições do sistema democrático, assentes numa sociedade de classes, dominada pelo capital, marcada por profundas desigualdades económicas e sociais, transmitindo e condicionando desigualdades e descriminações no acesso dos cidadãos e cidadãs ao exercício das liberdades, direitos e garantias, nomeadamente da capacidade de voto activa e passiva.

Depois não é nunca possível esquecer o papel do dinheiro, particularmente visível nas eleições norte-americanas, na corrupção, subversão e distorção democrática dos actos eleitorais e o papel dos órgãos de comunicação social dominantes e das centrais/agências de informação (Thomson Reuter, Associated Press (AP), Agence France Press (AFP), EFE, …) na manipulação passada e presente das massas eleitorais (os comunistas, seus alvos, que o digam!).

Uma conclusão inevitável : afinal quase toda a gente sabia e sabe do “sistema obsoleto” a que se encontra reduzido “o modelo da democracia liberal” dos EUA….Só que até ver, não tiram muitas ilações e lições desse conhecimento!

Mas verdadeiramente extraordinário depois disto tudo é lermos na comunicação social a seguinte notícia de 03JUN24: “O Governo dos EUA anunciou hoje que vai lançar um programa regional, que inclui Angola, de cerca de 10 milhões de dólares (9,3 milhõesde euros), para promover sistemas pluripartidários representativos. Em comunicado, a Embaixada dos EUA em Angola e São Tomé e Princípe afirma que o Programa de Apoio aos Partidos Políticos para uma Democracia Resiliente e Inclusiva (PQPRID, sigla em inglês), financiado pela Agência para o Desenvolvimento Internacional (USAID), (Será uma variante da “National Endowment for Democracy, NED,“Suporting Freedom Around the World” que semeia por todo o mundo dinheiro para fazer brotar a democracia?) será lançado na quarta-feira, em Luanda, e será implementado, em Angola, em parceria com o Governo e com os partidos políticos com assento parlamentar.” Notável! 

Mas não seria melhor começarem pela própria casa? Uma democracia tão boa, tão boa….que até se exporta com dumping, mesmo se as mais das vezes é com botas cardadas e à bomba…

(1) Explica José Pedro Teixeira Fernandes, “Caso se mantenham as tendências de voto actuais, o próximo Presidente dos EUA será determinado pelo desfecho eleitoral emsete estados da federação: Arizona, Carolina do Norte, Geórgia, Michigan, Nevada,Pensilvânia e Wisconsin. (Em algumas análises o número é alargado até 12.) Trata-se dos chamados “swing states” ou, numa terminologia mais ou menos similar,“battleground states”. Por outras palavras, são estados onde o voto pode ainda oscilardecisivamente entre o Partido Democrata (…) e o Partido Republicano (…) afectandoa composição do colégio eleitoral, ou seja, a escolha do futuro Presidente.”, Público,25JUL24.

(2) “De facto os partidos e candidatos que tentam concorrer com o regime bipartidáriosão sistematicamente impedidos pelo aparelho eleitoral. Poucos se conseguemqualificar para aparecer nos boletins de voto, cujos critérios variam em cada estado. Assondagens dos media só mencionam os nomes dos candidatos democrata e republicano– pouquíssimas vezes citam um terceiro ou quarto candidato. A imprensa não noticiaas actividades dos outros candidatos nem os entrevista. Para participar nos debates organizados pela Comissão dos Debates Presidenciais o candidato precisa de 15% dasintenções de voto nas sondagens (…). Toda o aparelho do regime eleitoral norte-americano – fiscalização, justiça, instituições, imprensa, (...) funciona como se houvesse apenas dois candidatos: o democrata e o republicano.” Eduardo Vasco,Eleições nos EUA: uma democracia que não permite oposição, Opera Mundi - Diálogos do Sul Global, 13MAI24.

(3) Eduardo Vasco, Eleições nos EUA: uma democracia que não permite oposição,Opera Mundi -Diálogos do Sul Global, 13MAI24.

(4) Clara Ferreira Alves, Follow the Money, Revista do Expresso, 29OUT20.

(5) Gary LaFree, Entrevista, Público, 21JUL24.

(6) Luís Aguiar-Conraria, Uma sociedade demente, Expresso, 05JUL24.

(7)Maria João Marques, O pessimismo justifica-se, Público, 03JUL24.

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