JORNALISMO SEM PRESSA DA PAZ! Agostinho Lopes
O que justifica que o jornalismo dominante e muitos dos jornalistas portugueses, nomeadamente nos ditos órgãos de referência, estejam cada vez mais afunilados, formatados, adictos, pela “Comunicação Estratégica” dos aparelhos militares e de contra-informação das principais potências capitalistas, nomeadamente dos EUA, Reino Unido e outros? Uma lamentável e estranha dependência. E uma dúvida: não estamos no caminho para uma persistente violação do que estabelecem os livros de estilo e etc. sobre isenção, objectividade, credibilidade das fontes... dos órgãos de comunicação social?
Este arrazoado vem a propósito de um jornal – Público – e do jornalista que é o seu Director, David Pontes – relativamente ao Editorial de 16JUN24, “Uma paz ainda distante”.
No Editorial escreve-se a propósito da “Cimeira para a Paz na Ucrânia” realizada na Suíça. Começa por ser estranho que se diga que um dos objectivos da Cimeira foi a tentativa de “reduzir espaço a que nos tempos mais próximos surjam iniciativas inúteis que tentem levar os dois países a conversações.” Limitar as iniciativas de paz? Como se avalia que uma iniciativa é “inútil” sem previamente conhecê-la? Sem saber, pelo menos, quem a promove? E aquilo que propõe? As coisas funcionam assim num processo de paz que queira interromper um conflito? Mas tudo bem, mesmo se parece que antes se quis fixar um “ultimato” para a paz. Ou é assim, ou nada! Ultimato com a tentativa de fazer pesar o consenso de um número elevado de países e organizações (e isolar tanto quanto possível o outro contendor!) o que, convenhamos, não parece ter acontecido!
O pior, e completamente inaceitável, é que o Editorial se dedica depois a insultar a inteligência dos seus leitores e a militância dos que têm reclamado a paz para a guerra em vez da continuação da guerra... para chegar à paz! Invocando-os por “aqueles que se apressam a bramar por “paz” (com aspas e tudo), David Pontes confronta-os com dois quesitos: as propostas de Putin “para pôr fim à guerra na Ucrânia”, de 6.ª feira, 13JUN24; e os documentos das negociações de paz de Fevereiro/Abril de 2022, publicitados agora pelo New York Times. David Pontes considera que esses adeptos da paz, face às “exigências inaceitáveis” de Moscovo, devem pôr cobro à pressa na exigência da paz! Vê-se que há sentido de urgência no “terminus” do conflito no Editorial!
Inadmissível que alguém com as responsabilidades do Editorialista, Director de um Jornal, tenha direito a negar a “pressa” da paz e a invectivar os “apressados” da paz! O que significa esta posição de insensibilidade e insensatez perante a continuidade da guerra? Percebe-se o conteúdo, físico, concreto, de cada hora de guerra a mais, em vidas e destruição? Percebe-se que se tenha dúvidas sobre quais as melhores condições para a paz, mas tal não significar não querer, ou atrasar, a paz? E já ontem, há meses, na Ucrânia como em Gaza, era tarde porque o melhor era nunca ter sido precisa a paz, pois era sinal de que não tinha havido guerra? Achará o jornalista que o Papa (se não é proibido citá-lo) não tem afirmado sempre a pressa da paz? E que, a propósito, até já disse aquela coisa iconoclasta para muitos – “a coragem da bandeira branca”. E depois, os que reclamam já a paz, paz já, bramam pela “paz”? Então os que não têm pressa zurram pela guerra? E, depois, os que querem rapidamente a paz o que têm a ver com as propostas de Putin, que nem parece estar, também, muito apressado pelo fim da guerra? Defender a paz é identificação com as propostas de Putin? Um completo absurdo tais teorias, que só podem entender-se como insultos e ataques aos que defendem a paz!
Mas mais grave ainda para um jornalista é a abordagem distorcida, incompleta, superficial das negociações de paz logo no desencadear da invasão de Fevereiro a Abril de 2022, na Turquia. O Editorial “esqueceu-se” do principal facto desse processo: a falência do acordo, como aconteceu, e quem a determinou/decidiu! O que aconteceu para que, havendo acordo entre a Ucrânia e a Rússia, o desfecho das negociações tivesse sido o desacordo? Quem foram os responsáveis? A Rússia? Não! A Ucrânia? Contrariamente, ao que DP indicia, também não! Como toda a gente do mundo sabe, os responsáveis foram os EUA e o Reino Unido (certamente articulados com a UE e a NATO). Foram essas entidades que impuseram o rompimento à Ucrânia e quem foi levar o recado a Kiev e a Zelensky foi o então 1.º Ministro inglês, Boris Jonhson! (1) Toda a gente sabe excepto... o Director do Público! Que, pelo que diz, também achou bem que o acordo borregasse face às clausulas da Rússia aceites pela Ucrânia! Como, aliás, confessa: “É bem elucidativo perceber que se os ucranianos até mostravam abertura para esquecerem a integração na NATO e admitir a ocupação de partes do território (mesmo que a não soberania russa sobre os mesmos)”. Já os malandros dos russos queriam coisas que tocavam a “identidade nacional ucraniana”, tais como proibir dar vivas aos nazis que lutaram ao lado de Hitler!
Não deixa de ser digno de registo que tal Editorial tenha sido publicado no mesmo jornal que traz uma longa e importante entrevista de Jeffrey Sachs (JS) – o Director do Centro para o Desenvolvimento Sustentável da Universidade de Colúmbia e Presidente da Rede de Soluções para o Desenvolvimento Sustentável da ONU. À pergunta do jornalista: “O que se tem defendido é que cabe à Ucrânia decidir que acordo considera justo. Impor um acordo desses não seria mais uma ideia imposta de fora? JS responde: “Falo com os líderes europeus em privado e o que eles dizem é diferente do que dizem em público. Eles estão tomados pela política americana. Os EUA não são uma força para o bem neste mundo, porque estão demasiado orientados para o poder e isto é importante que as pessoas compreendam. Desde que os EUA disseram aos ucranianos para abandonarem as negociações, em Março de 2022, já morreram 500 mil pessoas. Todos os dias estão centenas a ser mortas, porque Biden não quer ter um revés político antes da sua eleição em Novembro.”
Este jornalismo sem pressa da paz é o mesmo que, em sucessivas notícias sobre a Geórgia, continua a falar na “Lei Russa”. Entre as dezenas de exemplos possíveis ver o Expresso de 12 de Maio: “Lei Russa” ameaça adesão à UE”, grosso título de notícia sobre a tentativa de uma “revolução colorida”; “uma lei de inspiração russa”, diz Bernardo Pires de Lima em “A nossa Luta na Geórgia”, na Visão de 16MAI24; ou “uma lei que é uma cópia da legislação repressiva inventada por Vladimir Putin na Rússia e que ele tem procurado fazer adotar nos países satélites vizinhos”, da autoria de Victor Ângelo, “Sobre a Geórgia e os “agentes estrangeiros” ao serviço de Putin”, no Diário de Notícias de 17JUN24. O admirável é que todos estes e outros estão fartinhos de saber que tal legislação há muito faz parte do ordenamento jurídico dos EUA e que a UE aprovou em Dezembro de 2023 coisa semelhante! Hipocrisia total. (2)
O mesmo jornalismo que investiga tanta coisa, que de tanta coisa faz notícias, minudências, resíduos que escorrem das mesas das centrais de informação, operações de diversão e manipulação lançados por serviços de informação e contra-informação, faz há muitos meses um silêncio de morte sobre as investigações e os potenciais autores da sabotagem dos gasodutos Nord Stream 1 e 2, uma das mais significativas operações militares da guerra na Ucrânia, exterior ao território ucraniano.
É importante que os cidadãos muito preocupados, e com razão, com a rápida e brutal subida da influência eleitoral, política e social da extrema-direita, compreendam que o apodrecimento da conjuntura e contexto políticos onde medram essas forças reaccionárias e nazi-fascistas têm uma razoável contribuição do branqueamento e enaltecimento que algum jornalismo sobre estas faz.
(1) Texto do Major-General Carlos Branco, “As palavras e os factos após dois anos de guerra”, O Jornal Económico, 07MAR24: “Mais de 60 países por todo o mundo adotaram leis sobre agentes estrangeiros, nomeadamente as democracias ocidentais, muito semelhantes e nalguns casos mais exigentes do que a georgiana. Os EUA, que estão por detrás destas ações desestabilizadoras, aprovaram em 1938 a Lei de Registo de Agentes Estrangeiros /FARA). A própria UE adotou em dezembro de 2023, legislação sobre agentes estrangeiros, o designado “Pacote de Defesa da Democracia”, nalguns aspetos mais rigorosa do que a lei americana.”
(2) O artigo do Major-General Carlos Branco, “A tentativa de “maidanizar” a Geórgia”, O Jornal Económico, 13MAI24, esclarece completamente esta questão: “Também afirmámos que a Ucrânia tinha sido impedida de fazer a paz, em março de 2022. Essas afirmações não foram igualmente bem aceites. Mas declarações posteriores de vários responsáveis vieram confirmar, na íntegra, a justeza daquilo que tínhamos afirmado. Perdeu-se uma oportunidade de terminar a guerra em condições não desfavoráveis à Ucrânia.
Davyd Arakhamia, membro da delegação ucraniana às negociações em Istambul, e Naftali Bennett, antigo primeiro-ministro israelita, que liderou uma iniciativa de mediação de Israel, confirmaram, aquilo que afirmámos. Recentemente, o The Wall Street Journal apresentou uma versão do acordo prestes a ser aprovada, não tivesse existido a intervenção de Boris Johnson junto de Kiev.
O que antes foi considerado uma suposição herética, afinal, é mesmo um facto. Entretanto, o antigo chairman do comité militar da NATO, o general alemão Harald Kujat veio confirmar tudo o que afirmámos: “houve negociações em Istambul com um excelente resultado para a Ucrânia “. “Todos os ucranianos mortos, assim como todos os russos mortos ou feridos depois de 9 de Abril (de 2022), devem-se ao facto de a Ucrânia não ter sido autorizada a assinar este tratado de paz.”
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