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16 de fevereiro de 2025

A censura e as mentiras propaladas como verdades

 Da pag de Tita Alvarez    O textoe é  a 1ªparte do artigo de Luis M. Loureiro via Tertúlia Orwelliana.

O autor é professor de comunicação e jornalismo da Universidade do Minho, antigo jornalista de investigação, grande repórter e correspondente de guerra da RTP.) 

 A “Culpa” de Orwell - A Ucrânia de 2014 a 2024: uma década a fabricar a novilíngua 
Controlar os média. A fábrica de produção de evidências. O “Ministério da Verdade” de Quieve

A interdição dos média russos no espaço europeu foi anunciada a 27 de Fevereiro de 2022. Nem três dias haviam passado da invasão da Ucrânia pelas tropas do Kremlin, e a Europa das “democracias avançadas” ⎼ tão avançadas que qualquer truque de linguagem serve de máscara para exercícios de repressão do pensamento livre ⎼ já fazia com a informação proveniente da Rússia, o que Israel só fez com a non grata cadeia de televisão árabe Al Jazeera oito meses após o início da sua invasão de Gaza.

Não é rigoroso afirmar, contudo, que a censura aos média russos tenha sido uma inovadora ideia europeia. Os decisores em Bruxelas limitaram-se a seguir o guião definido, desde 2014, pelos governos ucranianos saídos da mudança de regime dos protestos da praça Maidan, em Quieve.

Televisões, rádios, jornais e sites informativos, acusados de posicionamentos críticos, ditos pró-russos, ou de terem a sua propriedade efectivamente ligada a políticos e oligarcas com relações próximas a Moscovo, haviam sido condicionados, inicialmente, ou impedidos de operar, e as suas licenças revogadas, depois, desde que, em Dezembro de 2014, o governo do então presidente Petro Poroshenko e do primeiro-ministro Arseniy Yatsenyuk criou o Ministério para a Política de Informação (MPI).
O ministério esteve entregue, durante anos, ao homem-forte dos serviços para a Segurança da Informação na Guarda Nacional ucraniana, Yuriy Stets, antigo jornalista unha-com-carne com o oligarca Poroshenko. O aparecimento do MPI seria um dos primeiros momentos de choque e de desilusão para os sectores mais moderados da sociedade ucraniana, prenunciando o rápido esfumar das promessas de democratização ocidentalizada nascidas, menos de um ano antes, do sucesso da chamada “Revolução da Dignidade”.

Haviam decorrido apenas nove meses desde a deposição violenta e profundamente fracturante do presidente Viktor Yanukovych. Uma parte da sociedade ucraniana, a mais ocidentalizada, viu-a como uma revolução democrática, mas a outra, a leste e a sul da Ucrânia, contestou-a logo como um golpe de estado inconstitucional. 

Eleito em 2010, com um programa que advogava o reequilíbrio das relações comerciais e políticas com o vizinho russo e com o mundo ocidental, Yanukovych fora igualmente sufragado nas urnas, num processo validado pela comunidade internacional, ao reafirmar o estatuto constitucional de neutralidade militar da Ucrânia, o que era, na prática, um claro travão à anunciada adesão à OTAN(/NATO,) encetada dois anos antes pelo antecessor Viktor Yushchenko.
Jornalistas independentes e organizações mediáticas não alinhadas com a nova narrativa pró-ocidental, instalada em Quieve em Fevereiro de 2014, questionaram imediatamente as vastas competências de controlo dos média e os amplos poderes censórios do ministério de Stets, ao qual foi então atribuída, por muitos, a designação orwelliana de “Ministério da Verdade”.

As preocupações com a nova estrutura governamental circulariam de boca em boca, tomando conta de muitos debates internos, o que chamou a atenção de média internacionais como o jornal britânico Guardian, que lhes dedicou, por esses dias, uma reportagem — veiculando as profundas preocupações de jornalistas e de alguns sectores moderados da sociedade ucraniana, cada vez mais críticos do rumo que o processo político estava a seguir. E não apenas o processo político.

De facto, durante toda a segunda metade de 2014, jornalistas ucranianos deram, muitas vezes, conta do que se estava a passar na Donbass [região da bacia hidrográfica do Donets, abrangendo os oblasti de Lugansk e Donetsk, n.e.] e no sul da Ucrânia, o que tinha, igualmente, reflexos incómodos para o regime de Poroshenko em alguma da imprensa internacional mais atenta. [n.e.= nota editorial]

Conferiram, por exemplo, destaque a situações como o massacre de cerca de cinquenta manifestantes anti-Maidan, queimados vivos, a 2 de Maio, por elementos da extrema-direita ultranacionalista e de grupos neonazis ucranianos, em Odessa, num processo que nunca teve qualquer apuramento de responsabilidades.

A mesma imprensa referiu também os relatórios da ONU que denunciavam os crimes de guerra cometidos pelos batalhões Azov e Aidar no decurso da chamada operação anti-terrorista na Donbass, a partir de Abril, comparando-os aos métodos de terror sobre civis usados pelo ISIS no Iraque e na Síria.

Noticiou ainda as mortes de jornalistas ocidentais às mãos das forças governamentais, como o repórter fotográfico italiano Andrea Rocchelli, morto na Donbass, e deu voz às queixas das populações civis de Donetsk e Lugansk, vítimas, muitas vezes, da acção militar indiscriminada das forças enviadas por Quieve para reprimir a sublevação contra o Estado ucraniano pró-ocidental nascido meses antes com a deposição do presidente que haviam eleito, em 2010, de forma esmagadora, naquelas regiões — para um mandato que, constitucionalmente, só terminaria em finais de 2015.

O facto é que, muito cedo, após Maidan, a política ucraniana foi orientada para uma perseguição feroz aos média e aos jornalistas desalinhados com a nova afirmação ultranacionalista do país — que fazia coincidir um discurso europeísta (UE) e atlanticista (OTAN/NATO) com um processo político e legislativo efectivamente russofóbico, que culminaria, em Fevereiro de 2019, com a mudança na Constituição que deixou cair um estatuto de neutralidade militar que estava afirmado no texto fundamental desde a fundação do Estado ucraniano.

Alguns desses jornalistas foram mesmo assassinados ou forçados ao exílio, subsistindo hoje dezenas de situações que nunca ficaram totalmente esclarecidas. Poucos meses depois do aparecimento do Ministério para a Política de Informação, surgiam organismos estatais, como a Stratcom Ukraine, financiados directamente pela OTAN(/NATO), pela União Europeia e pelos principais governos ocidentais, que visavam organizar e articular a comunicação oficial do Estado ucraniano no espaço nacional e na esfera internacional e, de acordo com os relatórios públicos do organismo, reorganizar também toda a dinâmica interna de comunicação nas Forças Armadas da Ucrânia, desenvolvendo essa comunicação de acordo com os mais elevados padrões da OTAN(/NATO). Para estas acções e organismos foram, assim, orientadas, desde 2014, avultadas somas de dinheiro ocidental.

O copo com que se tem vindo a analisar a realidade ucraniana não pode, por isso, deixar de ser virado ao contrário: para podermos legitimamente questionar a produção informativa dos média russos que a Comissão Europeia paternalisticamente nos proibiu de ver, ouvir e ler em 2022, não teremos, igualmente, de interrogar o que se passou, na última década, na Ucrânia e nos seus aliados ocidentais, relativamente à produção informativa que nos tem chegado, sem qualquer possibilidade de um contraditório minimamente consistente (mesmo que este pudesse ser resolvido por nós como meramente propagandístico, esforço a que fomos convenientemente poupados)?

O nosso ângulo de análise passa a ser determinado por esta pergunta: o que é verdade e o que é mentira numa guerra de informação?

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