Da pag de Tita Alvarez O textoe é a 1ªparte do artigo de Luis M. Loureiro via Tertúlia Orwelliana.
O autor é professor de comunicação e jornalismo da Universidade do Minho, antigo jornalista de investigação, grande repórter e correspondente de guerra da RTP.)
A “Culpa” de Orwell - A Ucrânia de 2014 a 2024: uma década a fabricar a novilíngua
Controlar os média. A fábrica de produção de evidências. O “Ministério da Verdade” de Quieve
A
interdição dos média russos no espaço europeu foi anunciada a 27 de
Fevereiro de 2022. Nem três dias haviam passado da invasão da Ucrânia
pelas tropas do Kremlin, e a Europa das “democracias avançadas” ⎼ tão
avançadas que qualquer truque de linguagem serve de máscara para
exercícios de repressão do pensamento livre ⎼ já fazia com a informação
proveniente da Rússia, o que Israel só fez com a non grata cadeia de
televisão árabe Al Jazeera oito meses após o início da sua invasão de
Gaza.
Não é rigoroso
afirmar, contudo, que a censura aos média russos tenha sido uma
inovadora ideia europeia. Os decisores em Bruxelas limitaram-se a seguir
o guião definido, desde 2014, pelos governos ucranianos saídos da
mudança de regime dos protestos da praça Maidan, em Quieve.
Televisões,
rádios, jornais e sites informativos, acusados de posicionamentos
críticos, ditos pró-russos, ou de terem a sua propriedade efectivamente
ligada a políticos e oligarcas com relações próximas a Moscovo, haviam
sido condicionados, inicialmente, ou impedidos de operar, e as suas
licenças revogadas, depois, desde que, em Dezembro de 2014, o governo do
então presidente Petro Poroshenko e do primeiro-ministro Arseniy
Yatsenyuk criou o Ministério para a Política de Informação (MPI).
O
ministério esteve entregue, durante anos, ao homem-forte dos serviços
para a Segurança da Informação na Guarda Nacional ucraniana, Yuriy
Stets, antigo jornalista unha-com-carne com o oligarca Poroshenko. O
aparecimento do MPI seria um dos primeiros momentos de choque e de
desilusão para os sectores mais moderados da sociedade ucraniana,
prenunciando o rápido esfumar das promessas de democratização
ocidentalizada nascidas, menos de um ano antes, do sucesso da chamada
“Revolução da Dignidade”.
Haviam
decorrido apenas nove meses desde a deposição violenta e profundamente
fracturante do presidente Viktor Yanukovych. Uma parte da sociedade
ucraniana, a mais ocidentalizada, viu-a como uma revolução democrática,
mas a outra, a leste e a sul da Ucrânia, contestou-a logo como um golpe
de estado inconstitucional.
Eleito
em 2010, com um programa que advogava o reequilíbrio das relações
comerciais e políticas com o vizinho russo e com o mundo ocidental,
Yanukovych fora igualmente sufragado nas urnas, num processo validado
pela comunidade internacional, ao reafirmar o estatuto constitucional de
neutralidade militar da Ucrânia, o que era, na prática, um claro travão
à anunciada adesão à OTAN(/NATO,) encetada dois anos antes pelo
antecessor Viktor Yushchenko.
Jornalistas
independentes e organizações mediáticas não alinhadas com a nova
narrativa pró-ocidental, instalada em Quieve em Fevereiro de 2014,
questionaram imediatamente as vastas competências de controlo dos média e
os amplos poderes censórios do ministério de Stets, ao qual foi então
atribuída, por muitos, a designação orwelliana de “Ministério da
Verdade”.
As preocupações
com a nova estrutura governamental circulariam de boca em boca, tomando
conta de muitos debates internos, o que chamou a atenção de média
internacionais como o jornal britânico Guardian, que lhes dedicou, por
esses dias, uma reportagem — veiculando as profundas preocupações de
jornalistas e de alguns sectores moderados da sociedade ucraniana, cada
vez mais críticos do rumo que o processo político estava a seguir. E não
apenas o processo político.
De
facto, durante toda a segunda metade de 2014, jornalistas ucranianos
deram, muitas vezes, conta do que se estava a passar na Donbass [região
da bacia hidrográfica do Donets, abrangendo os oblasti de Lugansk e
Donetsk, n.e.] e no sul da Ucrânia, o que tinha, igualmente, reflexos
incómodos para o regime de Poroshenko em alguma da imprensa
internacional mais atenta. [n.e.= nota editorial]
Conferiram,
por exemplo, destaque a situações como o massacre de cerca de cinquenta
manifestantes anti-Maidan, queimados vivos, a 2 de Maio, por elementos
da extrema-direita ultranacionalista e de grupos neonazis ucranianos, em
Odessa, num processo que nunca teve qualquer apuramento de
responsabilidades.
A
mesma imprensa referiu também os relatórios da ONU que denunciavam os
crimes de guerra cometidos pelos batalhões Azov e Aidar no decurso da
chamada operação anti-terrorista na Donbass, a partir de Abril,
comparando-os aos métodos de terror sobre civis usados pelo ISIS no
Iraque e na Síria.
Noticiou
ainda as mortes de jornalistas ocidentais às mãos das forças
governamentais, como o repórter fotográfico italiano Andrea Rocchelli,
morto na Donbass, e deu voz às queixas das populações civis de Donetsk e
Lugansk, vítimas, muitas vezes, da acção militar indiscriminada das
forças enviadas por Quieve para reprimir a sublevação contra o Estado
ucraniano pró-ocidental nascido meses antes com a deposição do
presidente que haviam eleito, em 2010, de forma esmagadora, naquelas
regiões — para um mandato que, constitucionalmente, só terminaria em
finais de 2015.
O facto é
que, muito cedo, após Maidan, a política ucraniana foi orientada para
uma perseguição feroz aos média e aos jornalistas desalinhados com a
nova afirmação ultranacionalista do país — que fazia coincidir um
discurso europeísta (UE) e atlanticista (OTAN/NATO) com um processo
político e legislativo efectivamente russofóbico, que culminaria, em
Fevereiro de 2019, com a mudança na Constituição que deixou cair um
estatuto de neutralidade militar que estava afirmado no texto
fundamental desde a fundação do Estado ucraniano.
Alguns
desses jornalistas foram mesmo assassinados ou forçados ao exílio,
subsistindo hoje dezenas de situações que nunca ficaram totalmente
esclarecidas. Poucos meses depois do aparecimento do Ministério para a
Política de Informação, surgiam organismos estatais, como a Stratcom
Ukraine, financiados directamente pela OTAN(/NATO), pela União Europeia e
pelos principais governos ocidentais, que visavam organizar e articular
a comunicação oficial do Estado ucraniano no espaço nacional e na
esfera internacional e, de acordo com os relatórios públicos do
organismo, reorganizar também toda a dinâmica interna de comunicação nas
Forças Armadas da Ucrânia, desenvolvendo essa comunicação de acordo com
os mais elevados padrões da OTAN(/NATO). Para estas acções e organismos
foram, assim, orientadas, desde 2014, avultadas somas de dinheiro
ocidental.
O copo com que
se tem vindo a analisar a realidade ucraniana não pode, por isso,
deixar de ser virado ao contrário: para podermos legitimamente
questionar a produção informativa dos média russos que a Comissão
Europeia paternalisticamente nos proibiu de ver, ouvir e ler em 2022,
não teremos, igualmente, de interrogar o que se passou, na última
década, na Ucrânia e nos seus aliados ocidentais, relativamente à
produção informativa que nos tem chegado, sem qualquer possibilidade de
um contraditório minimamente consistente (mesmo que este pudesse ser
resolvido por nós como meramente propagandístico, esforço a que fomos
convenientemente poupados)?
O
nosso ângulo de análise passa a ser determinado por esta pergunta: o
que é verdade e o que é mentira numa guerra de informação?
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