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Privatização da ANA: Continua o assalto!
Com a privatização da ANA, o investimento foi brutalmente reduzido, com as verbas a serem acumuladas nos resultados líquidos, para permitir a apropriação de rendas pela multinacional.
A recente publicação dos lucros da ANA em 2022 foi tratada essencialmente pelos extraordinários resultados alcançados, um lucro de 334 milhões de euros. E esse número, o maior de sempre, foi justamente destacado na comunicação social, obtido num quadro em que o sector aéreo ainda não recuperou plenamente.
Mas a privatização da ANA, tal como a Comissão Parlamentar de Inquérito à TAP está a mostrar sobre esta, não pode ser compreendida através da espuma mediática. Há que mergulhar no processo, para então perceber os mecanismos criminosos de apropriação e destruição de riqueza. Criminosos no sentido de serem crimes contra a soberania e a economia portuguesa, crimes contra a qualidade de vida do nosso povo. Do ponto de vista estritamente jurídico, esses crimes foram, na maior parte dos casos, previamente legalizados, pois como sempre, as classes dominantes constroem a arquitectura jurídica que legaliza e protege as formas da sua apropriação de riqueza.
Mas voltando aos concretamente. Vamos ver o que significa e o que está por trás desses resultados financeiros.
O lucro da ANA
A generalidade da comunicação social, ela própria detida e dependente dos grupos económicos, e por isso sempre desejosa de pintar as privatizações de cor-de-rosa, destaca que «a partir do 11.º ano da privatização, a ANA tem de partilhar parte das suas receitas com o Estado, começando em 1% da receita bruta até acabar nos 10% (entre o 41.º e o 50.º anos). As contas mais recentes divulgadas pelo Governo dão um total de 2756 milhões de euros a pagar pela ANA ao Estado até ao final da actual concessão». Que espectacular privatização que nos fará receber (necessariamente agradecidos) mais quase três mil milhões. Nenhum, repito, nenhum jornalista se lembrou de inverter a fórmula? É que se 10% (no máximo 10%, mas vamos simplificar) são 2756 milhões então 90% são 24804 milhões. Ou seja, que a ANA gerará de lucros até ao final da concessão qualquer coisa como 25 mil milhões de euros.
Se pensarmos que a ANA foi «vendida» por 2 mil milhões de euros, mais um empréstimo de mil milhões da Vinci à ANA que está nas contas da ANA a render juros 3% acima do mercado (são mais 20 milhões anuais que vão para França limpos de impostos todos os anos), e que nos dez primeiros anos a ANA teve lucros de 1444 milhões de euros (ver quadro anexo), e a isso somarmos a previsão (deduzida dos números do governo!) de que a ANA terá lucros de mais 25 mil milhões até ao final da concessão, ficamos com uma ideia aproximada da imensa riqueza que o país perde com esta privatização. Riqueza de que as multinacionais se apropriam depois de remunerarem justamente quem tal serviço lhes prestou: e é por isso que nunca há-de faltar dinheiro para fazer propaganda, directa e indirecta, às liberalizações e privatizações.
Ano | Resultado Líquido da ANA SA. (fonte Relatório e Contas do ano respectivo) |
---|---|
2013 | 11,9 |
2014 | 50,6 |
2015 | 101,2 |
2016 | 168,1 |
2017 | 248,5 |
2018 | 282,3 |
2019 | 301,8 |
2020 | -79,7 |
2021 | 25,5 |
2022 | 333,9 |
Total | 1444,1 |
Quase 1,5 mil milhões em apenas 10 anos e com uma pandemia pelo meio!
Aqueles que tiverem as mentes completamente torradas pela ideologia neoliberal, e até aqueles onde a ideia das virtudes da concorrência ainda só penetrou discretamente, tal como o bichinho na maçã, estarão agora a pensar que esse aumento de lucros foi obtido graças às extraordinárias qualidades dos gestores privados e da gestão privada.
Mas não. Cada razão para se ter aumentado o lucro é uma faceta do crime contra o povo português. Vamos dar alguns exemplos.
O desinvestimento
Só com a redução do investimento para a média do «privado» a ANA pública teria gerado mais 550 milhões de resultados líquidos. Mas o país não teria a infra-estrutura aeroportuária que tem. Só no Aeroporto do Porto, nos 10 últimos anos de gestão pública, a ANA investiu 455,2 milhões de Euros. Aplicando, e bem, o princípio constitucional da subsidiariedade, receitas essencialmente geradas no Aeroporto de Lisboa foram usadas para modernizar o Aeroporto do Porto, até o colocar como um dos melhores da Europa no seu espectro. Desde a privatização, o investimento no Aeroporto do Porto tem sido ainda mais residual que nos outros, mas não se ouve uma queixa de Rui Moreira ou dos restantes pseudo defensores do Porto e da Região Norte (queixas que ouviríamos todos os dias se a ANA fosse pública).
É que, com a privatização da ANA, o investimento foi brutalmente reduzido, com as verbas a serem acumuladas nos resultados líquidos, para permitir a apropriação de rendas pela multinacional:
Vejamos os volumes de investimento da ANA antes da privatização:
2002 | 2003 | 2004 | 2005 | 2006 | 2007 | 2008 | 2009 | 2010 | 2011 | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Investimento (Milhões €) | 81,4 | 69,5 | 154,4 | 134,8 | 103,6 | 86,3 | 137,8 | 153,7 | 127,4 | 95,1 |
Média do investimento nos últimos 10 anos de gestão pública | ||||||||||
114,4 |
E depois da privatização:
2012 | 2013 | 2014 | 2015 | 2016 | 2017 | 2018 | 2019 | 2020 | 2021 | 2022 | |
---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|---|
Investimento (Milhões €) | 60,9 | 53,1 | 36,4 | 61,1 | 69,5 | 62,7 | 55,8 | 47,1 | 76,2 | 25,7 | 35,3 |
A privatização foi concretizada em 2012 e implementada durante 2013, daí se ter considerado esses dois anos como mistos. | Média do Investimento após a privatização | ||||||||||
52,2 |
O aumento brutal da exploração
Olhemos para o quadro de pessoal da ANA, quer na sua evolução desde a privatização, quer na sua evolução durante e desde a pandemia de Covid.
Entre
2012 e 2019, o número de trabalhadores já tinha sido proporcionalmente
muito reduzido, pois é necessário relacionar a evolução do número de
trabalhadores com o aumento do número de passageiros e movimento. Em
média, a operação cresceu 10 a 15 vezes mais que os operacionais
efectivos. E na ANA SA o número de trabalhadores reduziu-se mesmo
perante a duplicação do movimento e das respectivas receitas.
Mas
a evolução durante a pandemia não é menos escandalosa. Se a operação
quase recuperou os números de 2019 (está a 5% de o fazer), o número de
trabalhadores está 23% abaixo dos números de 2019. Este é um dado
fundamental a reter quando daqui a um mês se andar a procurar desculpas
para o Verão caótico que está a chegar ao Aeroporto de Lisboa.
2012 | 2019 | 2022 | Diferença 12/19 | % 12/19 | Diferença 19/22 | % 19/22 | |
---|---|---|---|---|---|---|---|
No Passageiros (M) | 30,5 | 59,1 | 55,7 | 28,6 | 93,8% | -3,4 | -5,7% |
Movimentos (m) | 280 | 429 | 407 | 149 | 53,2% | 22 | -5,1% |
Volume de Negócios (M€) | 433 | 898 | 903 | 465 | 107,4% | 5 | 0,5% |
Resultado Líquido (M€) | 53,9 | 303,4 | 333,9 | 250 | 462,9% | 30,5 | 10,0% |
Efectivo a 31/12 (Grupo ANA) | 3056 | 3258 | 2493 | 202 | 6,2% | -765 | -23,4% |
Efectivo a 31/12 (ANA SA+ANAM SA em 2012) | 1384 | 1304 | 1136 | -80 | -5,70% | -168 | -12,8% |
Esta realidade é particularmente sentida na Portway (empresa de assistência em escala do grupo ANA). Veja-se a evolução do número de trabalhadores entre 2019 e 2022 comparada com o múmero de voos assistidos pela Portway, onde um aumento de quase 1% do trabalho é realizado por menos 31% dos trabalhadores.
Portway | 2019 | 2022 | Diferença | Variação |
---|---|---|---|---|
No Voos Assistidos | 53834 | 54155 | 321 | 0,6% |
Trabalhadores a 31/12 | 1954 | 1357 | -597 | -30,5% |
Um outro dado que o Relatório e Contas aponta, também edificante da forma como a ANA é gerida, é o facto de ter aproveitado a pandemia para suspender até novembro de 2024 as contribuições mensais previstas no Contrato Constitutivo do Fundo de Pensões ANA, S.A.
Depois de terem despedido, congelado e reduzido salários, agora a ANA expressa preocupação que «...2022 apresentou-se como um ano de desafios para o sector, particularmente no campo de recrutamento e treino, devido à necessidade de contratação de pessoal em face da recuperação do nível de passageiros...». Só falta começarem a queixar-se, como já tantos fazem: ninguém quer trabalhar, despedimo-los, e agora que fazem falta outra vez não estão acampados ali à porta à espera da nossa chamada.
Aumento brutal de todos os preços
Ao desinvestimento, acresce o aumento de preços praticados, que na prática significa que a ANA retira uma fatia maior de cada passageiro em cada voo.
Desde logo, aumentaram as taxas aeroportuárias. Só este ano, já aumentaram as taxas de tráfego e assistência em escala em 8,38% no Porto e 7,10% em Faro. Em Lisboa, esses aumentos foram ainda maiores. Para termos uma ideia, e usando taxas concretas, o valor mínimo por aterragem no aeroporto de Lisboa aumentou 19,67% em 2022, mas desde a privatização a taxa já cresceu 249%, e a taxa de passageiros Schengen no Aeroporto de Lisboa aumentou 26,1% em 2022, e já totaliza 91,3% de aumento desde a privatização.
Mas que dizer das taxas de segurança e PMR (Passageiros de Mobilidade Reduzida), que para um número de passageiros ligeiramente menor (como consta do quadro supra) passaram de 68,2 milhões em 2019 para uns extraordinários 102,1 milhões de euros em 2022. Este número deve ser recordado de cada vez, e são muitas, que um passageiro de mobilidade reduzida fica retido nos aviões por falta de assistência da ANA, apesar dos Migueis Sousas Tavares deste mundo imediatamente responsabilizarem de tal a TAP, a ANAC ou outra qualquer entidade pública, e nunca a verdadeira responsável, a mágica Vinci.
Este aumento de preços sentiu-se em tudo – alugueres, estacionamento, circulação. Mas o artigo já vai longo e importa deixar aqui ainda dois outros exemplos.
As Lojas Francas
As Lojas Francas de Portugal eram uma empresa nacional, detida pela TAP a 51%, que explorava as lojas duty free nos aeroportos nacionais dando um lucro razoável à TAP. Em 2015, os privados que se apoderaram da TAP ainda pensaram usar a venda desse activo para arrecadar uma capitalização extra de 120 milhões de euros. Mas a multinacional Vinci mostrou-lhes que, entre capitalistas, a solidariedade de classe só se aplica na adopção de mecanismos comuns para intensificar a exploração de quem trabalha.
A Vinci explicou à Gateway que ou vendia a bem (pelo preço da Vinci) ou perdia a concessão a mal (com um concurso onde seria substituída na concessão). E as Lojas Francas foram «vendidas» à ANA por cerca de 15,6 milhões.
Em 2022, a ANA substitui as Lojas Francas na concessão das Lojas por uma outra empresa, também detida a 51% pela ANA, a PTDF, desta vez em parceria com uma empresa pública (!) irlandesa, transferindo para a nova empresa todos os trabalhadores das Lojas Francas.
Os vampiros querem mais
Como se pode ver no quadro com os resultados líquidos da ANA, em 10 anos a concessão já lhe rendeu 1,4 mil milhões de euros de lucros. Pois não chega, e já avançou com um pedido de reequilíbrio económico e financeiro da concessão, exigindo mais de 200 milhões de compensações por causa da pandemia. E o que todos devemos ter claro é que vai acabar a receber grande parte desse dinheiro, por via de um qualquer Tribunal Arbitral ou de um acordo com o Estado para o prolongamento da concessão, e nessa altura, nem a Comissão Europeia, nem a Autoridade da Concorrência, nem nenhuma das instituições do estado burguês se vai queixar de apoios de estado indevido.
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