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9 de setembro de 2023

 José Augusto Esteves



É sabido que a vida e a obra de Amílcar Cabral é hoje motivo de redobrado

interesse, não apenas no Continente que o viu nascer – a África -, mas também

noutras latitudes, e objecto de estudo e atenção, quer da parte daqueles que

estão empenhados na luta e no rasgar dos caminhos da libertação e

emancipação dos povos, mas também da comunidade científica das áreas das

ciências sociais que o reconhecem como um dos grandes lideres e combatente

pela independência africana

e com um impacto positivo na humanidade.

Não admira pois que, cinquenta anos após o seu vil assassinato, quer pela sua

acção revolucionária e prática política como fundador e principal dirigente do

Partido Africano da Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde e nessa

qualidade como um activo e destacado construtor de uma acção comum dos

movimentos de libertação e seu representante em importantes fóruns

internacionais, quer pela sua produção teórica, Amílcar Cabral permaneça

como fonte de inspiração e ensinamentos para uns, para quem luta e toma

partido por um projecto de transformação progressista da sociedade e objecto

de estudo para quem investiga e procura produzir e divulgar conhecimento.

Carlos Lopes Pereira, acabou de nos dar uma visão global da obra que agora

se edita e que prefaciou. Bastaria ter em conta o que já nos revelou sobre o

seu conteúdo para mostrar a importância destes ”textos de luta” e a utilidade

desta iniciativa editorial.

Como complemento, gostaríamos, contudo, de realçar alguns aspectos que

ligam o combate de Amílcar Cabral e o seu pensamento à realidade dos

nossos dias e o que neles ainda se desenha do seu legado precioso, mas

igualmente aqueles outros que em nome da verdade histórica se impõe

destacar, contra as muitas falsificações e mistificações que certas forças

reaccionárias e saudosos do antigamente alimentam.

Desde logo, e em primeiro lugar, para realçar esse esclarecedor texto de

denúncia e desmascaramento do colonialismo português, datado de 1960 e

que abre o conjunto dos seus escritos.

Um texto que retrata a brutal exploração e o racismo bem explícito do

colonialismo português.

Está ali nesse texto e em balanço a “denúncia da destruição total da estrutura

económica e social da sociedade africana, o saque dos recursos e terras mais

férteis, o trabalho forçado, as culturas obrigatórias, o indigenato, a

descriminação e a segregação racial, depois da escravatura. A miséria

económica, a ausência de direitos cívicos e sociais, nomeadamente à saúde e

à educação, a violência e o massacre.

Um texto, editado em Londres, que se enquadra na grande batalha em que

Amílcar Cabral se empenhou, visando romper o muro de silêncio que se abateu

sobre a realidade do mundo colonial português e de combate às mistificações

propagandistas do regime fascista, nomeadamente a chamada “missão


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civilizadora” do colonialismo português e de um celebrado “luso-tropicalismo”,

que anunciava a construção de uma realidade distinta nas colónias

portuguesas do colonialismo clássico.

Esse conceito criado pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre que projectava

um modelo de colonização idílico, onde se escondia a brutal exploração e a

violência de que os povos coloniais eram vitimas, com o opaco manto de uma

alegada predisposição do português para a mistura racial, para a

miscigenação.

Esse conceito que transportava a ideológica noção que admitia “ ao modo

português de estar no mundo” um condição diferenciada e positiva, porque

agregadora, sustentando e legitimando a presença portuguesa em África e com

ela a negação e usurpação do direito desses povos à autodeterminação e a

decidir da sua vida e do seu futuro.

Esse suporte teórico de um mito que o próprio Amílcar Cabral havia de

denunciar ao afirmar “ Talvez confundindo inconscientemente realidades que

são biológicas ou propositadamente com realidades que são socioeconómicas

e históricas, Gilberto Freyre transformou todos nós, que vivemos nas colónias

portuguesas, em afortunados habitantes do paraíso luso-tropical”.

Foi essa ideia de paraíso que o fascismo português e a sua máquina de

propaganda passou a promover no plano internacional (depois de a ter negado

em nome da defesa de uma concepção de “raça lusa” que não admitia certas

misturas), no momento em que foi confrontado com a luta de libertação dos

povos das colónias e que os seus aliados imperialistas, participantes no saque,

hipocritamente aceitavam e ampliavam, assegurando os seus próprios

interesses.

Concepções mistificadoras que ainda hoje permanecem e são utilizadas pelas

forças mais retrógradas da sociedade portuguesa, usadas para adocicar e

branquear o colonialismo e o fascismo e apagar os seus crimes.

Ideias que servem como arma de arremesso contra Abril, mas também para

justificar a tomada de partido pelos projectos imperialista presentes na África

de hoje.

Refinadas construções políticas e ideológicas que a luta heróica e determinada

dos povos das colónias vai enfrentar e com êxito superar, com o importante

contributo de Amílcar Cabral.

É essa luta libertadora e contra a exploração conduzida pelo PAIGC que vamos

encontrar, percorrendo as páginas deste livro com que agora as Edições

Avante! nos presenteia.

Um empolgante trajecto que nos mostra a importância da luta e que nos diz e

confirma essa inquestionável verdade: - é impossível vencer um povo todo o

tempo!

Um impressionante percurso convicta e firmemente percorrido a caminho da

vitória que Amílcar e o seu Partido tinham como certa.

Nesse trajecto foi preciso construir e afirmar uma genuína organização

representativa dos povos para conduzir a luta de libertação. Levar a causa

anticolonial à esfera internacional, uma tarefa que Amílcar Cabral conduziu


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com mestria. Uma luta que à medida que avançava colocava sempre novos e

mais complexos desafios, sempre vencidos, mostrando quanto preconceito

racista e interesseiros objectivos transportavam as teses colonialistas que

sustentavam a tão propalada “imaturidade” dos povos africanos e da sua

incapacidade para se auto-determinarem.

Não são apenas as vitórias na frente política e diplomática ou as importantes

vitórias militares que em poucos anos permitiram libertar 2/3 do território da

Guiné-Bissau, é a criação de um Estado em desenvolvimento, de uma nova

vida política, económica, social e cultural que se constrói. E criar de novo como

sabemos, não é tarefa fácil e eles puseram de pé uma nova realidade, criando

novas estruturas nos mais diversos domínios, escolas, hospitais, infra-

estruturas económicas de produção e comercialização, entre outras, mas

também novas instituições políticas democráticas.

Uma realidade nova que se erguia, apesar dos bombardeamentos diários da

aviação, do napalm e derrotar um inimigo que agia em várias frentes e com

fortes aliados e meios postos à sua disposição pelos países da NATO. Que

utiliza os mais insidiosos métodos – o activar de sentimentos tribais, o suborno

com somas fabulosas, a promoção de movimentos fantoches, a psico-social, o

assassinato de dirigentes, a que se junta um fracassado plano global para

destruir o PAIGC.

Estão ali naquelas páginas o papel da luta como acto transformador não

apenas da realidade e da vida comum de todo o povo, mas do próprio homem

que se vai transformando lutando e construindo.

Essa luta que à medida que se desenvolvia fazia aumentar a consciência das

massas populares integradas na luta de libertação e do seu papel na vida.

Libertação que Amílcar Cabral tomava como um acto de cultura e factor de

cultura como nos explica e fundamenta em dois interessantes textos deste

livro.

Luta de libertação que Amílcar Cabral recusa transformar em racial. São várias

as passagens e os momentos em que o evidência, mas é significativo que o

faça no decorrer da II Conferência das Organizações Nacionalistas das

Colónias Portuguesas (1965), porque o expressava em nome de todos, quando

afirmava “ Nós, da CONCP, queremos que nos nossos países martirizados

durante séculos, humilhados, insultados, que nos nossos países nunca possa

reinar o insulto, e que nunca mais os nossos povos sejam explorados, não só

pelos imperialistas, não só pelos europeus, não só pelas pessoas de pele

branca, porque não confundimos a exploração ou os factores de exploração

com a cor da pele dos homens; não queremos mais a exploração no nosso

país, mesmo feita por negros”.

Este é um livro que nos permite conhecer o que foi a luta colonial de libertação,

que Amílcar Cabral sabia e tinha como adquirido por experiência alheia e da

história, ter de ser um produto de elaboração local e não matéria de

exportação. Luta que apelava à solidariedade recíproca entre os combatentes

de África e nas outras partes do mundo por causas justas. Solidariedade que

muito valorizava, nomeadamente aquela que era expressa e lhe chegava da

URSS e de outros países socialistas, nomeadamente de Cuba. Valorização na

qual incluía os antifascistas e anticolonialistas de Portugal, que, como afirmava:

“defendendo os interesses do seu próprio povo e do nosso, estão


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efectivamente a lutar contra a máquina de guerra colonial, contribuindo assim

para a nossa luta comum e fortalecendo os laços de solidariedade que ligam os

nossos povos”.

No que se refere a Portugal e ao povo português e à sua luta e esse é outro

aspecto que gostaríamos de realçar, o que podemos encontrar quando

percorremos as 400 e algumas mais páginas dos “textos de luta” é não apenas

a expressão de uma profunda amizade ao povo português (que distinguia do

regime e da elite colonialista portuguesa), mas uma grande coincidência de

pontos de vista e análises da situação de Portugal, das colónias e do mundo,

com a força que estava na vanguarda da luta aqui no País contra o fascismo e

colonialismo – o PCP - e que se traduz numa efectiva convergência de luta,

pela libertação de ambos (de todos) os povos.

De ambos os lados se reconhecia que Portugal era um País colonialista e ao

mesmo tempo colonizado, afirmação que Amílcar Cabral reforçava com a ideia

de que Portugal não tinha condições pelo seu peso e nível de desenvolvimento,

inclusivamente de “fazer neocolonialismo”.

De facto, por trás da dominação colonial portuguesa estava a dominação

imperialista estrangeira — ingleses, americanos, alemães, belgas e franceses.

Eram eles que tomavam a parte de leão, nas colónias e em Portugal, da

exploração dos recursos e dos mercados, dos diamantes ao algodão, do ferro

ao petróleo, da floresta ao açúcar, do manganés ao alumínio.

Não era o povo português o beneficiário, mas o grande capital estrangeiro e o

grande capital nacional seu aliado, como o Grupo CUF que, através da Casa

Gouveia, dominava na Guiné.

Era essa reconhecida particularidade da situação portuguesa que explicava

também a sobrevivência e a longevidade do colonialismo português. Essa

sobrevivência, como de ambos os lados se reconhecia, só era possível com o

apoio da NATO e do imperialismo.

A mesma visão em aspectos essenciais da situação internacional,

nomadamente sobre o papel histórico da Revolução de Outubro, da URSS e do

campo socialista na luta contra o fascismo e o imperialismo e na criação de

condições para o desenvolvimento do movimento de libertação nacional.

E se há muito o PCP tinha assumido o principio que é parte do património do

movimento operário revolucionário sobre a questão nacional: - “Uma nação não

pode ser livre e ao mesmo tempo continuar a oprimir outras nações”, há muito

tinha também definido que não bastava derrubar aqui o fascismo, era

necessário que lá, com ele derrubado forças patrióticas tivessem condições

para assumir de facto os destinos do seu povo – e essas forças eram em África

o PAIGC, o MPLA, a FRELIMO, o MLSTP – por isso o inquestionável apoio do

PCP aos movimentos que protagonizavam um verdadeiro projecto de

libertação, porque sem garantir essas condições o que inevitavelmente iria

acontecer era apenas a mudança de colonizador.

De facto, será num trajecto de luta comum e ajuda mútua — que Álvaro Cunhal

punha em evidência cá em Rumo à Vitoria quando afirmava que «A luta dos

povos das colónias pela independência é uma ajuda poderosa à luta do povo

português pela democracia. E a luta do povo português pela democracia é uma

ajuda poderosa à luta dos povos coloniais».


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E assim era, porque a liquidação do fascismo em Portugal e a conquista da

independência das colónias portuguesas correspondiam inteiramente a uma

necessidade histórica e à vontade dos respectivos povos.

Por fim, e porque, como nos lembra Amílcar Cabral, não há Revolução vitoriosa

na prática sem teoria revolucionária, um apontamento sobre esse texto

memorável “ a arma da teoria”, que nos revela o dirigente revolucionário,

estudioso e conhecedor da complexa realidade do seu País, da África e dos

problemas do mundo do seu tempo. Esse reconhecido e respeitado líder

nacionalista de África que é Amílcar Cabral, possuidor de todo um pensamento

estruturado, de aplicação do marxismo à realidade concreta africana. O

estratega que via em Lenine uma fonte de inspiração.

Esse notável texto pronunciado na Conferência de Solidariedade com os povos

de África, Ásia e América Latina realizada em 1966 em Havana, um discurso

feito em representação colectiva dos movimentos revolucionários de libertação

das colónias portuguesas.

Nele encontramos os grandes eixos da reflexão teórica para a elaboração de

uma estratégia revolucionária – os fundamentos e objectivos da libertação

nacional. Ali se analisa a dominação imperialista e as suas consequências nas

vertentes clássica e neoliberal, a força motora da história nas sociedades de

classe e no contexto específico das sociedades africanas, do papel da pequena

burguesia como alavanca social da luta de libertação nos países colonizados,

partindo da análise da sua estrutura social da sociedade nativa e dos níveis de

consciência e experiência existentes nessa sociedade e em consequência da

existência de uma vanguarda revolucionária (um Partido), como afirmava “

solidamente unida e consciente, do verdadeiro significado e objectivo da luta de

libertação nacional.

Nele se fundamenta e reivindica o direito de África a ter historia – uma história

própria – refutando as opiniões sobre a sua inexistência e da real possibilidade

da passagem da situação de exploração e de desenvolvimento em que se

encontra, para uma nova fase – para forma superior de existência – para uma

sociedade nova - com a destruição do domínio imperialista.

Que no contexto da África dos nossos tempos o aspecto principal da luta de

libertação nacional é a luta contra o neocolonialismo, vencendo importantes

fragilidades que estão bem presentes hoje na realidade africana.

Muitos dos obstáculos e debilidades em relação aos quais Amílcar Cabral

alerta atravessaram-se na heróica caminhada libertadora dos povos africanos.

Os poderes colonialistas e imperialistas, que nunca se conformaram com a

derrota, procuram, sob novas formas e novas coberturas ideológicas, recuperar

posições e prosseguir a exploração do rico continente africano e negar o direito

aos povos da construção da sua própria história.


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Mais uma vez se coloca a urgência da unidade dos que são alvo das injustiças,

vítimas da exploração, da discriminação e das desigualdades, independente da

sua origem, cor dos olhos ou da pele, etnia ou proveniência.

Um texto útil para quem luta hoje em África por uma verdadeira independência

e para quem noutras paragens vê a luta pela libertação dos povos como um

processo, ligado à realidade concreta de cada povo. Útil para quem quer

conhecer e olhar para África e, por ventura, o mundo, com outros olhos que

não sejam os olhos interesseiros das classes dominantes e do imperialismo.

Agora que comemoramos Abril e celebramos o centenário do centenário de

Amílcar Cabral é também o momento de reafirmar que os ideais libertadores de

soberania, progresso e justiça social pelos quais Amílcar Cabral deu a vida

acabarão por triunfar em toda a sua plenitude.

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