José Augusto Esteves
É sabido que a vida e a obra de Amílcar Cabral é hoje motivo de redobrado
interesse, não apenas no Continente que o viu nascer – a África -, mas também
noutras latitudes, e objecto de estudo e atenção, quer da parte daqueles que
estão empenhados na luta e no rasgar dos caminhos da libertação e
emancipação dos povos, mas também da comunidade científica das áreas das
ciências sociais que o reconhecem como um dos grandes lideres e combatente
pela independência africana
e com um impacto positivo na humanidade.Não admira pois que, cinquenta anos após o seu vil assassinato, quer pela sua
acção revolucionária e prática política como fundador e principal dirigente do
Partido Africano da Independência da Guiné-Bissau e Cabo Verde e nessa
qualidade como um activo e destacado construtor de uma acção comum dos
movimentos de libertação e seu representante em importantes fóruns
internacionais, quer pela sua produção teórica, Amílcar Cabral permaneça
como fonte de inspiração e ensinamentos para uns, para quem luta e toma
partido por um projecto de transformação progressista da sociedade e objecto
de estudo para quem investiga e procura produzir e divulgar conhecimento.
Carlos Lopes Pereira, acabou de nos dar uma visão global da obra que agora
se edita e que prefaciou. Bastaria ter em conta o que já nos revelou sobre o
seu conteúdo para mostrar a importância destes ”textos de luta” e a utilidade
desta iniciativa editorial.
Como complemento, gostaríamos, contudo, de realçar alguns aspectos que
ligam o combate de Amílcar Cabral e o seu pensamento à realidade dos
nossos dias e o que neles ainda se desenha do seu legado precioso, mas
igualmente aqueles outros que em nome da verdade histórica se impõe
destacar, contra as muitas falsificações e mistificações que certas forças
reaccionárias e saudosos do antigamente alimentam.
Desde logo, e em primeiro lugar, para realçar esse esclarecedor texto de
denúncia e desmascaramento do colonialismo português, datado de 1960 e
que abre o conjunto dos seus escritos.
Um texto que retrata a brutal exploração e o racismo bem explícito do
colonialismo português.
Está ali nesse texto e em balanço a “denúncia da destruição total da estrutura
económica e social da sociedade africana, o saque dos recursos e terras mais
férteis, o trabalho forçado, as culturas obrigatórias, o indigenato, a
descriminação e a segregação racial, depois da escravatura. A miséria
económica, a ausência de direitos cívicos e sociais, nomeadamente à saúde e
à educação, a violência e o massacre.
Um texto, editado em Londres, que se enquadra na grande batalha em que
Amílcar Cabral se empenhou, visando romper o muro de silêncio que se abateu
sobre a realidade do mundo colonial português e de combate às mistificações
propagandistas do regime fascista, nomeadamente a chamada “missão
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civilizadora” do colonialismo português e de um celebrado “luso-tropicalismo”,
que anunciava a construção de uma realidade distinta nas colónias
portuguesas do colonialismo clássico.
Esse conceito criado pelo sociólogo brasileiro Gilberto Freyre que projectava
um modelo de colonização idílico, onde se escondia a brutal exploração e a
violência de que os povos coloniais eram vitimas, com o opaco manto de uma
alegada predisposição do português para a mistura racial, para a
miscigenação.
Esse conceito que transportava a ideológica noção que admitia “ ao modo
português de estar no mundo” um condição diferenciada e positiva, porque
agregadora, sustentando e legitimando a presença portuguesa em África e com
ela a negação e usurpação do direito desses povos à autodeterminação e a
decidir da sua vida e do seu futuro.
Esse suporte teórico de um mito que o próprio Amílcar Cabral havia de
denunciar ao afirmar “ Talvez confundindo inconscientemente realidades que
são biológicas ou propositadamente com realidades que são socioeconómicas
e históricas, Gilberto Freyre transformou todos nós, que vivemos nas colónias
portuguesas, em afortunados habitantes do paraíso luso-tropical”.
Foi essa ideia de paraíso que o fascismo português e a sua máquina de
propaganda passou a promover no plano internacional (depois de a ter negado
em nome da defesa de uma concepção de “raça lusa” que não admitia certas
misturas), no momento em que foi confrontado com a luta de libertação dos
povos das colónias e que os seus aliados imperialistas, participantes no saque,
hipocritamente aceitavam e ampliavam, assegurando os seus próprios
interesses.
Concepções mistificadoras que ainda hoje permanecem e são utilizadas pelas
forças mais retrógradas da sociedade portuguesa, usadas para adocicar e
branquear o colonialismo e o fascismo e apagar os seus crimes.
Ideias que servem como arma de arremesso contra Abril, mas também para
justificar a tomada de partido pelos projectos imperialista presentes na África
de hoje.
Refinadas construções políticas e ideológicas que a luta heróica e determinada
dos povos das colónias vai enfrentar e com êxito superar, com o importante
contributo de Amílcar Cabral.
É essa luta libertadora e contra a exploração conduzida pelo PAIGC que vamos
encontrar, percorrendo as páginas deste livro com que agora as Edições
Avante! nos presenteia.
Um empolgante trajecto que nos mostra a importância da luta e que nos diz e
confirma essa inquestionável verdade: - é impossível vencer um povo todo o
tempo!
Um impressionante percurso convicta e firmemente percorrido a caminho da
vitória que Amílcar e o seu Partido tinham como certa.
Nesse trajecto foi preciso construir e afirmar uma genuína organização
representativa dos povos para conduzir a luta de libertação. Levar a causa
anticolonial à esfera internacional, uma tarefa que Amílcar Cabral conduziu
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com mestria. Uma luta que à medida que avançava colocava sempre novos e
mais complexos desafios, sempre vencidos, mostrando quanto preconceito
racista e interesseiros objectivos transportavam as teses colonialistas que
sustentavam a tão propalada “imaturidade” dos povos africanos e da sua
incapacidade para se auto-determinarem.
Não são apenas as vitórias na frente política e diplomática ou as importantes
vitórias militares que em poucos anos permitiram libertar 2/3 do território da
Guiné-Bissau, é a criação de um Estado em desenvolvimento, de uma nova
vida política, económica, social e cultural que se constrói. E criar de novo como
sabemos, não é tarefa fácil e eles puseram de pé uma nova realidade, criando
novas estruturas nos mais diversos domínios, escolas, hospitais, infra-
estruturas económicas de produção e comercialização, entre outras, mas
também novas instituições políticas democráticas.
Uma realidade nova que se erguia, apesar dos bombardeamentos diários da
aviação, do napalm e derrotar um inimigo que agia em várias frentes e com
fortes aliados e meios postos à sua disposição pelos países da NATO. Que
utiliza os mais insidiosos métodos – o activar de sentimentos tribais, o suborno
com somas fabulosas, a promoção de movimentos fantoches, a psico-social, o
assassinato de dirigentes, a que se junta um fracassado plano global para
destruir o PAIGC.
Estão ali naquelas páginas o papel da luta como acto transformador não
apenas da realidade e da vida comum de todo o povo, mas do próprio homem
que se vai transformando lutando e construindo.
Essa luta que à medida que se desenvolvia fazia aumentar a consciência das
massas populares integradas na luta de libertação e do seu papel na vida.
Libertação que Amílcar Cabral tomava como um acto de cultura e factor de
cultura como nos explica e fundamenta em dois interessantes textos deste
livro.
Luta de libertação que Amílcar Cabral recusa transformar em racial. São várias
as passagens e os momentos em que o evidência, mas é significativo que o
faça no decorrer da II Conferência das Organizações Nacionalistas das
Colónias Portuguesas (1965), porque o expressava em nome de todos, quando
afirmava “ Nós, da CONCP, queremos que nos nossos países martirizados
durante séculos, humilhados, insultados, que nos nossos países nunca possa
reinar o insulto, e que nunca mais os nossos povos sejam explorados, não só
pelos imperialistas, não só pelos europeus, não só pelas pessoas de pele
branca, porque não confundimos a exploração ou os factores de exploração
com a cor da pele dos homens; não queremos mais a exploração no nosso
país, mesmo feita por negros”.
Este é um livro que nos permite conhecer o que foi a luta colonial de libertação,
que Amílcar Cabral sabia e tinha como adquirido por experiência alheia e da
história, ter de ser um produto de elaboração local e não matéria de
exportação. Luta que apelava à solidariedade recíproca entre os combatentes
de África e nas outras partes do mundo por causas justas. Solidariedade que
muito valorizava, nomeadamente aquela que era expressa e lhe chegava da
URSS e de outros países socialistas, nomeadamente de Cuba. Valorização na
qual incluía os antifascistas e anticolonialistas de Portugal, que, como afirmava:
“defendendo os interesses do seu próprio povo e do nosso, estão
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efectivamente a lutar contra a máquina de guerra colonial, contribuindo assim
para a nossa luta comum e fortalecendo os laços de solidariedade que ligam os
nossos povos”.
No que se refere a Portugal e ao povo português e à sua luta e esse é outro
aspecto que gostaríamos de realçar, o que podemos encontrar quando
percorremos as 400 e algumas mais páginas dos “textos de luta” é não apenas
a expressão de uma profunda amizade ao povo português (que distinguia do
regime e da elite colonialista portuguesa), mas uma grande coincidência de
pontos de vista e análises da situação de Portugal, das colónias e do mundo,
com a força que estava na vanguarda da luta aqui no País contra o fascismo e
colonialismo – o PCP - e que se traduz numa efectiva convergência de luta,
pela libertação de ambos (de todos) os povos.
De ambos os lados se reconhecia que Portugal era um País colonialista e ao
mesmo tempo colonizado, afirmação que Amílcar Cabral reforçava com a ideia
de que Portugal não tinha condições pelo seu peso e nível de desenvolvimento,
inclusivamente de “fazer neocolonialismo”.
De facto, por trás da dominação colonial portuguesa estava a dominação
imperialista estrangeira — ingleses, americanos, alemães, belgas e franceses.
Eram eles que tomavam a parte de leão, nas colónias e em Portugal, da
exploração dos recursos e dos mercados, dos diamantes ao algodão, do ferro
ao petróleo, da floresta ao açúcar, do manganés ao alumínio.
Não era o povo português o beneficiário, mas o grande capital estrangeiro e o
grande capital nacional seu aliado, como o Grupo CUF que, através da Casa
Gouveia, dominava na Guiné.
Era essa reconhecida particularidade da situação portuguesa que explicava
também a sobrevivência e a longevidade do colonialismo português. Essa
sobrevivência, como de ambos os lados se reconhecia, só era possível com o
apoio da NATO e do imperialismo.
A mesma visão em aspectos essenciais da situação internacional,
nomadamente sobre o papel histórico da Revolução de Outubro, da URSS e do
campo socialista na luta contra o fascismo e o imperialismo e na criação de
condições para o desenvolvimento do movimento de libertação nacional.
E se há muito o PCP tinha assumido o principio que é parte do património do
movimento operário revolucionário sobre a questão nacional: - “Uma nação não
pode ser livre e ao mesmo tempo continuar a oprimir outras nações”, há muito
tinha também definido que não bastava derrubar aqui o fascismo, era
necessário que lá, com ele derrubado forças patrióticas tivessem condições
para assumir de facto os destinos do seu povo – e essas forças eram em África
o PAIGC, o MPLA, a FRELIMO, o MLSTP – por isso o inquestionável apoio do
PCP aos movimentos que protagonizavam um verdadeiro projecto de
libertação, porque sem garantir essas condições o que inevitavelmente iria
acontecer era apenas a mudança de colonizador.
De facto, será num trajecto de luta comum e ajuda mútua — que Álvaro Cunhal
punha em evidência cá em Rumo à Vitoria quando afirmava que «A luta dos
povos das colónias pela independência é uma ajuda poderosa à luta do povo
português pela democracia. E a luta do povo português pela democracia é uma
ajuda poderosa à luta dos povos coloniais».
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E assim era, porque a liquidação do fascismo em Portugal e a conquista da
independência das colónias portuguesas correspondiam inteiramente a uma
necessidade histórica e à vontade dos respectivos povos.
Por fim, e porque, como nos lembra Amílcar Cabral, não há Revolução vitoriosa
na prática sem teoria revolucionária, um apontamento sobre esse texto
memorável “ a arma da teoria”, que nos revela o dirigente revolucionário,
estudioso e conhecedor da complexa realidade do seu País, da África e dos
problemas do mundo do seu tempo. Esse reconhecido e respeitado líder
nacionalista de África que é Amílcar Cabral, possuidor de todo um pensamento
estruturado, de aplicação do marxismo à realidade concreta africana. O
estratega que via em Lenine uma fonte de inspiração.
Esse notável texto pronunciado na Conferência de Solidariedade com os povos
de África, Ásia e América Latina realizada em 1966 em Havana, um discurso
feito em representação colectiva dos movimentos revolucionários de libertação
das colónias portuguesas.
Nele encontramos os grandes eixos da reflexão teórica para a elaboração de
uma estratégia revolucionária – os fundamentos e objectivos da libertação
nacional. Ali se analisa a dominação imperialista e as suas consequências nas
vertentes clássica e neoliberal, a força motora da história nas sociedades de
classe e no contexto específico das sociedades africanas, do papel da pequena
burguesia como alavanca social da luta de libertação nos países colonizados,
partindo da análise da sua estrutura social da sociedade nativa e dos níveis de
consciência e experiência existentes nessa sociedade e em consequência da
existência de uma vanguarda revolucionária (um Partido), como afirmava “
solidamente unida e consciente, do verdadeiro significado e objectivo da luta de
libertação nacional.
Nele se fundamenta e reivindica o direito de África a ter historia – uma história
própria – refutando as opiniões sobre a sua inexistência e da real possibilidade
da passagem da situação de exploração e de desenvolvimento em que se
encontra, para uma nova fase – para forma superior de existência – para uma
sociedade nova - com a destruição do domínio imperialista.
Que no contexto da África dos nossos tempos o aspecto principal da luta de
libertação nacional é a luta contra o neocolonialismo, vencendo importantes
fragilidades que estão bem presentes hoje na realidade africana.
Muitos dos obstáculos e debilidades em relação aos quais Amílcar Cabral
alerta atravessaram-se na heróica caminhada libertadora dos povos africanos.
Os poderes colonialistas e imperialistas, que nunca se conformaram com a
derrota, procuram, sob novas formas e novas coberturas ideológicas, recuperar
posições e prosseguir a exploração do rico continente africano e negar o direito
aos povos da construção da sua própria história.
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Mais uma vez se coloca a urgência da unidade dos que são alvo das injustiças,
vítimas da exploração, da discriminação e das desigualdades, independente da
sua origem, cor dos olhos ou da pele, etnia ou proveniência.
Um texto útil para quem luta hoje em África por uma verdadeira independência
e para quem noutras paragens vê a luta pela libertação dos povos como um
processo, ligado à realidade concreta de cada povo. Útil para quem quer
conhecer e olhar para África e, por ventura, o mundo, com outros olhos que
não sejam os olhos interesseiros das classes dominantes e do imperialismo.
Agora que comemoramos Abril e celebramos o centenário do centenário de
Amílcar Cabral é também o momento de reafirmar que os ideais libertadores de
soberania, progresso e justiça social pelos quais Amílcar Cabral deu a vida
acabarão por triunfar em toda a sua plenitude.
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