Uma batalha pelos seus valores e pela verdade contra a mentira
Domingos Abrantes
As comemorações do 50.º aniversário da Revolução de Abril já em curso revestem-se da
maior importância para o futuro do regime democrático e para a defesa dos valores de
Abril, consubstanciados nas grandes conquistas democráticas e delas inseparável – a
conquista da liberdade, as grandes transformações políticas, económicas, sociais e
culturais, a intervenção das massas populares nas várias áreas da vida nacional como
parte constitutiva do regime democrático consagrado na Constituição – e como condição
da existência de Portugal como país de amplas liberdades, verdadeiramente democrático,
desenvolvido, soberano e solidário com a luta de todos os povos.
O Comité Central na sua reunião plenária de 8 de Dezembro de 2022 definiu as
orientações e as tarefas que irão determinar a intervenção do Partido, que, de forma
autónoma, realizará numerosas iniciativas, tendo em conta o quadro político em que
vivemos, o posicionamento das diferentes forças políticas e sociais em relação ao 25 de
Abril e, naturalmente, em conformidade com a natureza do Partido que somos e o
projecto que defendemos para Portugal, o qual integra os valores de Abril, democracia
avançada, tendo como horizonte a construção de um Portugal socialista.
É de prever, e pelo que vimos, ouvimos, lemos e sabemos já se pode dizer, que teremos
como certo que as forças responsáveis por dezenas de anos de ataques aos valores de
Abril procurarão fazer das comemorações do 50.º aniversário de Abril uma grande
operação para deturpar, denegrir e falsificar a história da Revolução, a sua natureza e as
suas conquistas, no sentido de justificar as políticas de direita de restauração capitalista e
monopolista contra as suas conquistas e dar novo fôlego à acção e projectos contra-
revolucionários presentes praticamente desde o 25 de Novembro de 1975. Uma operação
visando o branqueamento do fascismo e a absolvição dos seus crimes e das forças que o
sustentaram, os grandes grupos económicos e financeiros, hoje de novo «donos disto
tudo»; a desvalorização da resistência ao fascismo; os ataques ao PCP, a força mais
consequente da Resistência e da instauração do regime democrático; o apagamento do
papel dos trabalhadores na luta contra o fascismo e na construção do Portugal
democrático; a sobrevalorização do papel de certos sectores – católicos, estudantes,
esquerdistas, forças ditas liberais afectas ao regime; a condenação das grandes
conquistas democráticas – direitos dos trabalhadores, controlo operário, reforma agrária,
nacionalizações, política de soberania nacional –, apelidadas de ameaças à liberdade e à
democracia e salvas pelo golpe do 25 de Novembro, que pretendem impor como a
verdadeira data da conquista da liberdade e da democracia.
Para nós, comunistas, o 50.º aniversário da Revolução será encarado como um muito
importante momento de esclarecimento; de acção em defesa da natureza da Revolução
de Abril, da validade das suas experiências e resultados, uma batalha pela compreensão
do que foi a Revolução, e por que foi assim, afirmando o seu carácter libertador e
emancipador pela profundidade e natureza das transformações que operou no país em
todas as áreas.
O facto da natureza da Revolução ter sido determinada pela intervenção das massas
populares, e em particular pela intervenção autónoma dos trabalhadores em defesa dos
seus interesses e do país e não em defesa dos interesses dos «de cima», tornaram a
Revolução de Abril um dos maiores acontecimentos da longa luta dos trabalhadores pela
sua emancipação social e da nossa história colectiva como povo.
Vamos comemorar o 50.º aniversário de Abril como sempre o fizemos: com os olhos
postos no futuro.
Entretanto, é necessário socorrermo-nos em factos históricos contra as falsificações que
já estão em curso. Trata-se de nos centrarmos nas questões nucleares: a defesa da
natureza da Revolução e das forças que determinaram os seus resultados, questão
essencial para se compreender o papel e a natureza da acção contra-revolucionária e do
porquê de terem erigido o PCP à condição de principal obstáculo aos seus projectos.
O papel determinante do PCP e dos trabalhadores foi o que determinou a natureza
libertadora e emancipadora da Revolução de Abril, não como resultado de manobras, de
tentativas de impor uma nova ditadura, como caluniosamente nos acusam, sabendo-se
que nenhuma outra força se pode equiparar à luta dos comunistas pela liberdade.
A natureza da Revolução foi determinada por razões objectivas, desde logo pela natureza
do regime fascista e pelo papel que o PCP e os trabalhadores tiveram na resistência ao
fascismo.
O PCP é a única força política que não esquece o papel determinantes que os militares
do MFA tiveram no derrube da ditadura fascista e na conquista da liberdade. Este é o
mérito imorredouro dos militares de Abril. O derrube do fascismo, a instauração do regime
democrático constitucionalmente consagrado é inseparável da longa e heróica resistência
ao fascismo, inclusive o amadurecimento e desenvolvimento das contradições que
atingiram as forças armadas, uma das principais bases da garantia da sobrevivência do
regime durante décadas. A transformação do golpe militar em Revolução não foi um
momento foi um processo, ainda que contraditório e de desfecho incerto. O derrube da
ditadura não significou a liquidação do fascismo, o que só aconteceu quando, a par da
liquidação do poder político, se realizou a liquidação do poder económico que o
suportava, assente nos grandes grupos económicos, financeiros e latifundiários, os
grandes beneficiários e sustentáculos do fascismo.
O PCP, os trabalhadores e as mais amplas massas populares, em aliança com os
elementos mais progressistas do MFA, foram determinantes para transformar o golpe
militar na Revolução antifascista emancipadora e ser o que foi: uma revolução
democrática-nacional. Está muito esquecido que até ao golpe de 28 de Maio de 1926
existia um sistema multipartidário e que o único partido que não desertou, que não
hibernou à espera de melhores dias, nem se auto-dissolveu, como foi o caso do PS, foi o
PCP.
Cabe ao Partido Comunista Português o mérito de, na base da análise da natureza de
classe do fascismo, ter determinado que não só era necessário como era possível lutar
contra o fascismo e vencer, desde que se criasse uma organização clandestina que se
dispusesse a suportar os custos da luta que, necessariamente, seria longa.
Consequentemente, o PCP foi a única força que elaborou uma estratégia de luta
antifascista e encabeçou a resistência.
Contrariamente a outros sectores da oposição que «sonhavam» com transformações
políticas – não poucas vezes pensadas na base de compromissos com sectores do
regime, mantendo intacto o essencial do aparelho do Estado fascista, o seu poder
económico expresso na fusão do Estado com os grandes grupos económicos e
financeiros, na continuada submissão ao imperialismo, com garantia dos seus interesses
de classe e anti-nacionais, esquecendo-se de que a sobrevivência da ditadura fascista
depois da derrota do nazi-fascismo na Segunda Guerra Mundial se deveu decisivamente
ao suporte político, económico, militar e diplomático da parte das potências imperialistas
–, o PCP concluiu que sendo o regime fascista a ditadura terrorista dos monopólios,
associados ao capital estrangeiro, e dos latifundiários só podia ser derrubado pela força, e
que a par da solução do problema político nacional se impunha liquidar o poder do regime
pela via das nacionalizações, da reforma agrária e de uma política que desse resposta
aos problemas do povo e do país e libertando Portugal do domínio estrangeiro. O PCP
incorporou nos seus princípios que não pode ser livre um povo que oprime outros povos.
Sendo uma realidade o facto de Portugal ser simultaneamente um país colonial e
colonizado, a construção de um Portugal democrático e soberano era inseparável da
liquidação do sistema colonial. O PCP era a única força que dispunha de um Programa e
de uma estratégia para a revolução antifascista, o Programa para a Revolução
Democrática e Nacional aprovado em 1965 no seu VI Congresso, ou seja, nove anos
antes da Revolução de Abril. De igual modo, o PCP era a única força política cujos
objectivos estavam expressos claramente antes do derrube da ditadura e actuava em
conformidade com o seu Programa. O mesmo não se pode dizer de outras forças que
esconderam os seus reais objectivos à espera da primeira oportunidade de retomar a
defesa dos grandes interesses económicos dominantes.
A Revolução de Abril mudou profundamente Portugal, colocando-o na senda da
emancipação social e do progresso, e o Portugal de hoje, continuando a reflectir o
impacto das conquistas de Abril, não traduz o país que poderia ter sido em resultado da
acção de tais forças.
A prova da justeza das teses do PCP e da validade das conquistas da Revolução para a
construção de uma democracia avançada podem ser aferidas pelo que representa a
política de direita contra Abril: restauração do poder dos grandes grupos económicos e
financeiros e dos agrários; o domínio imperialista; a destruição das mais importantes
conquistas, como as nacionalizações e a reforma agrária e a retoma crescente da
promiscuidade entre o poder político e o económico. Toda uma acção visando fazer
retroceder tudo o que foi progresso social e civilizacional de Abril, criando as condições
para uma sociedade cada vez mais polarizada socialmente, com degradação dos serviços
públicos; a intensificação da exploração e o sistemático ataque aos direitos dos
trabalhadores. Portugal que restaurou a dignidade nacional com a Revolução de Abril,
que inscreveu nos seus princípios constitucionais a paz e a amizade com todos os povos
e a solidariedade com a sua luta, torna-se um peão de brega do imperialismo e do
militarismo, participa em guerras de agressão contra outros países. A defesa da soberania
e os interesses nacionais deram lugar à subserviência e submissão perante os interesses
do imperialismo, incluindo os seus projectos neocoloniais, quando a Revolução de Abril,
coroando a longa luta comum do povo português e dos povos das colónias contra o
fascismo e o colonialismo, abriu caminho para a liquidação do império colonial português
e a independência dos povos colonizados por Portugal – uma conquista de alcance
histórico.
O papel dos trabalhadores, das suas organizações de classe e das massas populares na
Revolução tem estado muitas vezes, senão desde sempre, no centro do confronto
ideológico, das falsificações históricas, do anticomunismo e da mentira. Lembremos que
as suas grandes crise políticas, no alinhar de quem era quem pela Revolução e pela
contra-revolução, se manifestaram em torno da Unicidade Sindical e do Dia do
Trabalhador, o 1.º de Maio de 1975.
É um facto comprovado pela realidade que a Revolução de Abril com as suas conquistas
é inseparável da intervenção dos trabalhadores e das mais amplas massas populares na
construção de Portugal democrático e na sua defesa. As massas populares saudaram
efusivamente a conquista da liberdade e o MFA. Mas gritaram igualmente «Fascismo
nunca mais», exigiram que se liquidasse o Estado fascista, que fossem dadas respostas
aos seus anseios e necessidades. E, sobretudo, começaram a intervir para dar solução
aos seus problemas e do país. Foi pela acção das massas que foram infligidas as
primeiras derrotas das tentativas spinolistas de conter as alterações ao regime: a
libertação dos presos, o desmantelamento da PIDE, o feriado o 1.º de Maio, o direito de
organização e manifestação e muitos outros direitos.
Uma afirmação fazemos que nenhuma elucubração teórica ou fantasia revolucionária
pode desmentir à luz dos factos: todas as grandes conquistas democráticas foram «filhas
da acção revolucionária das massas». Não foi a Constituição que determinou as grandes
conquistas da Revolução, foram estas que determinaram a natureza avançada da
Constituição da República.
Na longa história da luta dos trabalhadores portugueses contra a exploração e pela
liberdade e pela emancipação, as grandes conquistas democráticas alcançadas com a
Revolução figurarão como uma das suas mais gloriosas páginas.
A natureza da intervenção dos trabalhadores na Revolução só se tornou possível pela sua
intervenção autónoma, com as suas reivindicações próprias e em defesa dos seus
interesses próprios.
É uma falsificação histórica as afirmações de alguns de que a intervenção das massas na
construção do seu próprio destino tenha sido o resultado da irresponsabilidade, do
voluntarismo, de manobras anti-democráticas, ou de processos espontâneos das massas,
como afirmam outros empenhados em desvalorizar o papel do PCP e da classe operária
na resistência e na Revolução como sendo indissociáveis.
Os trabalhadores sob a orientação política e orgânica do PCP foram a força mais
determinante na luta contra o fascismo, expressa em milhares de lutas que forjaram
numerosos dirigentes que encabeçaram a acção das transformações revolucionárias após
o derrube da ditadura. Caiu no mais profundo silêncio não só este facto, mas igualmente a
grandiosidade da luta operária nos anos 60 e o movimento grevista que se desenvolveu
até às vésperas do 25 de Abril. Lembre-se igualmente que as comemorações do 1.º de
Maio se tenham afirmado desde 1962 como a principal jornada de luta antifascista e a
classe operária como vanguarda reconhecida.
E, finalmente, necessário é lembrar que a intervenção organizada das massas na
Revolução de Abril não se pode separar da existência de uma vasta rede de comissões
de trabalhadores, de se ter formado em plena ditadura a Intersindical como Central
Sindical Única dos trabalhadores portugueses. Uma realidade que a contra-revolução
compreendeu muito bem ao erigir como tarefa primeira a liquidação do movimento dos
trabalhadores como força organizada e unida.
As acusações de que o PCP só se empenhou na aprovação da Constituição como mal
menor, alterada a correlação de forças, inscrevem-se ma táctica do «agarra que é
ladrão». O PCP tinha inscrito há longos anos no seu Programa como um dos objectivos
da revolução antifascista a eleição de uma Assembleia Constituinte com a função de
elaborar e aprovar uma Constituição democrática. A defesa da legitimidade
revolucionária, resultante das condições em que se deu o derrube do fascismo e tornou
possível as grandes conquistas de Abril não alterou o facto de que comunistas e o PCP
tenham sido grandes obreiros da elaboração da Constituição que consagrou o regime
democrático saído da Revolução. A verdade histórica é que outras forças que não o PCP
tudo fizeram para, alterada a correlação de forças depois do 25 de Novembro, impedir a
aprovação da Constituição e a votaram a pensar em momentos mais propícios para a
desfigurar. Não se pode ignorar que essas forças – PS, PSD, CDS –, a base da contra-
revolução e da política de recuperação capitalista e latifundista, têm feito das sucessivas
revisões da Constituição a consagração da política de liquidação das grandes conquistas
democráticas impostas pela acção revolucionária das massas. O mesmo fizeram os seus
governos durante dezenas de anos.
A abertura de mais um processo de revisão constitucional por iniciativa da direita tem em
vista os objectivos de todas as revisões realizadas até hoje: o desvirtuamento e mutilação
da Constituição da República, do seu texto e projecto e dos direitos que consagra. O PS,
ao admitir e dar cobertura à possibilidade de novas alterações à Constituição, assume
uma grave opção para o regime democrático. Uma opção que se pode tornar num troféu
para a direita numa altura em que se comemora o 50.º aniversário da Revolução.
Os objectivos da contra-revolução foram-se ampliando passo a passo. Hoje a mudança
do regime saído da Revolução de Abril é posta de forma mais clara e insistentemente,
ainda que sob a mentira de serem necessários aperfeiçoamentos que respondam aos
novos tempos e outras mistificações com que cobrem os verdadeiros objectivos políticos.
A mentira, as actuações pouco éticas não são questões acidentais. São praticamente
elevadas à categoria de «princípio democrático».
É uma verdade histórica que o PS, PSD e mesmo o CDS (os partidos que governam o
país há décadas) rasgaram os seus programas, dizem exactamente o contrário do que
disseram outrora sobre a Revolução, os monopólios, o capitalismo, o socialismo, a NATO,
a reforma agrária, os direitos dos trabalhadores, etc. O capitalismo classificado como
«uma força opressora brutal» e que se impunha «a luta pela sua destruição total» – como
defendia o PS – deu lugar à defesa (e à gestão do capitalismo monopolista) como o
melhor dos mundos possíveis. As tiradas grandiloquentes sobre a reforma agrária, a
liquidação dos monopólios e a construção de uma sociedade sem classes, de um
Portugal soberano, afinal não passavam de tiradas para enganar as massas. E não foi
Mário Soares que jurou por todos os santinhos que jamais faria alianças com a direita? E
não se pense que são coisas do passado.
As alianças do PS com a direita nas coisas essenciais e determinantes tornaram-se uma
realidade ao longo dos anos. Os defensores da privatização da TAP hoje são
exactamente os mesmos que ainda não há muito tempo classificavam essa medida quase
como um crime contra os interesses nacionais.
O PSD, em matéria de recurso à mentira política, não fica nada a dever ao PS. De
defensor da «manutenção dos sectores-chave e indústrias básicas na posse do Estado,
passou a paladino das privatizações e as nacionalizações como um crime.
O Partido Comunista Português foi e é o único partido que actua em conformidade com o
projecto de sociedade que defende. Sabemos os meios colossais ao serviço da mentira
política, realidade que não pode ser subestimada. Mas a mentira política pode atrasar o
desenvolvimento da consciência das massas e de alguns sectores sociais, mas não darão
resposta aos problemas reais com que o país e o povo se defrontam.
A incorporação dos valores de Abril mo Portugal do futuro exige que se trave com
determinação a batalha contra a mentira e o revisionismo histórico. Uma batalha que só
pode ser ganha com o PCP e nunca contra o PC, a força que mais se identifica com Abril.
Sem comentários:
Enviar um comentário