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8 de março de 2023

O valor das «criptomoedas» de críptico não têm nada

 Miguel Tiago


 Surgiu com o fulgor típico de um produto envolto na estimulante novidade de um lançamento publicitário. Com o trabalho concertado da grande rede mundial de comunicação social, orquestrada pelos interesses dos seus principais accionistas e pelos centros de decisão do sistema capitalista global, os activos imateriais baseados em criptografia de chave pública começaram a chegar à casa de milhões de pessoas por todo o mundo. Portugal não foi excepção e facilmente recordamos a rápida difusão de notícias, especialmente na imprensa escrita, sobre esses activos. O primeiro a ser amplamente divulgado foi a Bitcoin.

Piscando o olho aos yuppies, por um lado, e aos anti-sistema, por outro, a imprensa e os promotores das chamadas «criptomoedas» tentam há anos convencer os anticapitalistas incautos de que esses activos representam um rude golpe no sistema capitalista por não terem relações com estados nem empresas e, ao mesmo tempo, cativam os adeptos Rothbard e Hoppe (1), do liberalismo económico e do capitalismo em geral, aliciando os investidores com um activo que representa o corolário da financeirização da economia e da apropriação da riqueza através de mecanismos de especulação pura e dura.

 

A tecnologia não tem sinal político, a sua aplicação sim

 

 

Para que possamos aprofundar uma reflexão sobre a utilidade e os papéis económico e político destes «activos», importa antes de mais enquadrar o assunto do ponto de vista técnico. Partimos do princípio, para a construção de um pensamento marxista sobre activos imateriais baseados em criptografia pública, tal como em diversas outras tecnologias, de que a técnica e a tecnologia em si mesmas são isentas de sinal político e de uma função específica ao serviço desta ou daquela classe. Tal como encaramos as restantes tecnologias, o conhecimento científico e a técnica não possuem uma marca determinística sobre o papel que podem desempenhar em cada estado de desenvolvimento da sociedade humana.

Virtualmente, podemos considerar que as tecnologias têm um potencial de aplicação adequado à hegemonia de cada momento histórico e que, consoante a correlação de forças, a aplicação de uma tecnologia pode ser tanto conservadora, como revolucionária. Esta visão é meramente ilustrativa, pois sabemos que, na dialéctica constante que caracteriza a História da Humanidade, também a tecnologia cria novos pontos de equilíbrio da hegemonia pelas alterações que provoca nas forças e no modo de produção, pelo que o seu potencial – conservador ou revolucionário – não é estático.

Aqui chegados, no caso dos «criptoactivos», podemos concluir que a tecnologia em si mesma é isenta de um sinal político. No caso, as tecnologias desta família podem assegurar e certificar a autenticidade de um qualquer conjunto de linhas de programação, de dados e conteúdos digitais, ou qualquer outro «activo» imaterial baseado em informática, como tem sido o caso dos «NFT» (non-fungible tokens) (2) e essa certificação, tal como está construída, tem como objectivo principal a salvaguarda da autenticidade do conteúdo digital. Claro que num contexto como o actual, uma tecnologia de certificação dessa natureza é colocada inteiramente ao serviço da acumulação e da especulação. De certa forma, funciona como uma espécie de tecnologia capaz de atestar a autenticidade de um activo, de forma supostamente próxima do inviolável.

Imaginemos uma tecnologia capaz de atestar com aproximadamente 100% de certeza, e impassível de falsificação, a autenticidade de um Van Gogh e capaz de registar todas as transacções a que foi sujeita essa obra. Essa tecnologia considerada por si só pode ser útil. Por exemplo, para o estudo da História da Arte. Contudo, no mundo do mercado capitalista que usa a obra de arte para permitir a fuga fiscal e o parqueamento de activos com vista à especulação, essa tecnologia serviria principalmente para assegurar o potencial especulativo da obra de arte.

 

 

As utilizações e as relações dos «criptoactivos» com a economia real

 

A disponibilização nos mercados de «activos» baseados em criptografia, tal como a conhecemos hoje, não passa de um grande esquema de especulação, nas mãos de financeiras que visam escapar a toda a regulação. Contudo, também será útil ponderar sobre que tipo de regulação e regulamentação poderia ser aplicada e com que fins.

Antes disso, importa ainda clarificar que muitos «criptoactivos» têm sido deliberadamente confundidos com «moedas» quando não correspondem ao conceito de moeda tal como o concebemos até aqui. Desde há muito que a moeda representa uma dívida emitida, geralmente por um estado, por um soberano, que assegura pagar ao portador um determinado valor por essa moeda. A moeda como a conhecemos é aceite como «mercadoria universal» porque tem associada a si uma das mais estáveis dívidas do sistema económico: a dívida soberana. Mesmo depois do choque Nixon (1971-1973), em que o dólar deixa de representar uma dívida em ouro, a robustez da dívida soberana não foi abalada. Na verdade, o desligamento total do dólar perante o ouro gerou uma moeda estritamente fiduciária, altamente especulativa e desligada do valor de uma economia real, mas ainda assim, ligada à dívida soberana de um estado.

Ao mesmo tempo, também não se podem comparar as erradamente chamadas «criptomoedas» com valores mobiliários, na medida em que não existe qualquer relação entre uma «criptomoeda» e um activo de uma empresa, como existe, por exemplo, no caso das acções emitidas por uma sociedade. Isso não significa que as acções ou outros valores mobiliários não possam ser emitidos com base em tecnologia blockchain.

Uma empresa pode actualmente, emitir acções ou outros títulos de valores mobiliários sob o formato de NFT ou outro formato com recurso à tecnologia blockchain, tal como pode um estado emitir uma moeda ou um título de dívida com recurso a essas tecnologias. Isso não muda a essência do que foi emitido: um valor mobiliário, no primeiro caso; uma moeda ou um título de dívida no segundo.

Na prática, as chamadas «criptomoedas» são apenas emissões privadas de um activo cuja autenticidade é provada. Económica e financeiramente isso não difere muito de um cidadão privado ter uma impressora única no mundo e emitir uma moeda cuja autenticidade é impassível de forjar. Ou seja, o valor que essa moeda tem é estritamente fiduciário. Mas neste caso, a confiança situa-se no patamar da crença e da fé, na medida em que não existem bens ou rendimentos associados à emissão dessa moeda.

No caso das chamadas «criptomoedas» e dos «criptoactivos» descritos como «autónomos», ou «independentes» do sistema financeiro e dos bancos centrais, o seu valor em moedas soberanas é estritamente relacionado com a sua oferta e procura no mercado, não tendo qualquer garantia, colateral, dívida ou propriedade associada.

 

 

O mercado desregulado – a euforia dos tubarões

 

A volatilidade de um activo totalmente desmaterializado é demasiado grande para a própria banca convencional e regulada manifestar interesse na incorporação de mercados e transacções de «criptoactivos» sem respaldo material. De certa forma, essa não incorporação dos «critpo» no mercado financeiro convencional é o que os torna tão apetecíveis para os tubarões da finança, para as economias paralelas dos tráficos e para os detentores de empresas fintech (3) sem licença bancária.

Do total de novos «investidores» em mercados de «cripto», mais de três quartos perde dinheiro. Em recente artigo do Banco de Compensações Internacionais (4), ficam claros os números do desastre, após o pico de valor das «criptomoedas» em 2021: 73 a 81% dos participantes do mercado perderam parte ou totalidade do investimento inicial. O mesmo artigo também demonstra que a esmagadora maioria dos «investidores» de retalho entra no mercado de «criptoactivos» com base nos preços e não com base em ideais de descentralização da moeda.

O mercado de transacções de «cripto» é obscuro, desregulado, não respaldado por bens materiais ou sequer rendimentos de capital. Essas propriedades, no entanto, são parte significativa do seu valor especulativo e financeiro, na medida em que permitem o funcionamento de um mercado sem qualquer vigilância e sem quaisquer obrigações por parte dos operadores e dos «tubarões» desse mercado. Na verdade, estamos perante um mecanismo de concentração de rendimentos, de especulação desmedida e de desmaterialização e financeirização absoluta. A exposição de clientes de retalho (5) a um produto desregulado, altamente volátil e sem respaldo ou garantias representa um perigo para esses clientes que não se repercute ainda, de acordo com o FMI, no sistema financeiro na medida em que este não incorporou esses mercados. Ou seja, a bolha especulativa concentra-se nas mãos dos milhões de clientes que entregam parte das suas poupanças a um grupo incógnito de empresas e especuladores que arrecadam tanto mais rendimento quanto mais novos clientes entrem no esquema.

Colocando de lado os impactos económicos (materiais) e ambientais da «mineração» (6) de «criptos», podemos identificar os impactos da concentração de riqueza num mercado absolutamente improdutivo e especulativo. A criação de uma «criptomoeda», como a bitcoin, por exemplo, não gera a criação de riqueza, mas sim um mecanismo de apropriação de riqueza produzida em outras actividades.

Nesse aspecto, a «criptomoeda» não difere de uma unidade de participação de um fundo de investimento imobiliário, por exemplo, que não visa outro objectivo senão a apropriação de riqueza gerada em outras actividades produtivas. Contudo, a «criptomoeda» não está indexada nem respaldada por quaisquer rendimentos prediais ou de capital, sendo que o seu valor é ainda mais volátil.

Neste momento, após o pico de 2021 em que o valor total do mercado de «criptomoedas» ascendeu a 3 biliões (3x1012) de dólares, esse mercado vale 800 mil milhões de dólares, o que significa que representa hoje menos de um terço do valor que atingiu em 2021, no auge da especulação em torno das «cripto». A destruição desse valor no mercado, significa todavia que esse dinheiro foi perdido e essas perdas concentram-se nos clientes de retalho, nos tais cerca de 80% de «investidores» que perde dinheiro em cripto e que foi concentrado nas mãos dos restantes «investidores», os verdadeiros tubarões do mercado financeiro mais puro que existe, na medida em que é o mais «livre», o mais desregulado, o mais selvagem. O mercado financeiro das «cripotomoedas» é o exemplo magno do funcionamento de um mercado sem intervenção do estado e representa o sonho dos especuladores: a financeirização total dos activos, a definição do valor do activo estritamente em função da especulação e a ausência de garantias de capital real.

 

 

O «activo» é falso mas o dinheiro perdido é verdadeiro

 

A forma airosa como o Governo de maioria absoluta PS – no essencial, acompanhado por PSD, CDS, CH e IL –  finge responder a esta burla de escala global visa criar a ilusão de que existe uma actuação, quando existe apenas um «virar a cara» e «assobiar para o lado» enquanto se cobra uma taxa liberatória de 28% nas mais-valias obtidas por transacções de «criptoactivos» mantidos por períodos inferiores a um ano e se cobra imposto de selo aos intermediários. Ou seja, não existe qualquer supervisão sobre as operações em concreto, sobre os destinos e origens dos capitais envolvidos, nem qualquer fiscalização dos «activos» transaccionados. O governo sabe que está a sancionar uma burla e, de certa forma, a torná-la lícita através da taxação, quando o que verdadeiramente se impõe é a proibição de burlar e a fiscalização que o impeça.

O «activo<« é falso, mas o dinheiro perdido é verdadeiro e o Governo acaba de legalizar, aliás seguindo o mote da União Europeia, uma burla através de uma prática lesiva dos interesses dos pequenos «investidores» e da economia. Imaginemos que o Governo cobrava impostos a um esquema de Ponzi e que, a partir daí, lavava as suas mãos perante as perdas dos burlados.

 

 

Um «mercado» a regular ou um «mercado» a desincentivar e extinguir

 

Uma praça financeira totalmente desregulada e cujo «valor» assenta nessa desregulamentação não passa de uma forma de apropriação de riqueza gerada pelo trabalho para a sua concentração nas mãos de novos ou velhos parasitas. Ao mesmo tempo, a institucionalização e regulamentação de um mercado de «cripoactivos» só pode levar a um de dois desfechos:

 

a) A contaminação do sistema financeiro convencional pela volatilidade dos activos tóxicos, que, no essencial são todos os «criptoactivos» (7) se considerados no longo prazo.

b) A conversão dos «criptoactivos» em activos financeiros iguais aos restantes, o que, não os isentando de constituírem um activo meramente especulativo, lhes retira o exotismo e os impede de serem transaccionados sem qualquer vigilância, fiscalização ou regulação e supervisão financeira.

O risco de a primeira possibilidade se materializar é demasiado grande para valer a pena arriscar a segunda. O sistema financeiro não precisa de mais «produtos financeiros complexos» para angariar os milhões dos seus clientes de retalho e os trabalhadores não precisam de alimentar mais parasitas e seus esquemas de apropriação e concentração dos rendimentos do trabalho. Ao mesmo tempo, a exposição de «clientes de retalho», pequenos investidores sem preparação para intervenção em mercados altamente especulativos à voragem dos burlantes das «criptomoedas» justifica o investimento político dos governos no desincentivo à participação nesses mercados com vista à sua extinção.

É por isso que o mercado das «cripto», sendo apenas uma nova expressão da economia de casino da alta finança, não precisa de estímulo nem regulamentação, precisa de ser desincentivado, extinto e, se possível, levar com ele os restantes mecanismos de extorsão, lícitos ou ilícitos, regulamentados ou não regulamentados, da banca, esteja ela na sombra ou não.

 

Notas

 

(1) Murray Rothbard e Hans-Herman Hoppe, teóricos da absolutização da propriedade privada e da total substituição dos estados e serviços públicos por prestadores privados.

(2) NFT – é um «bem», uma obra de arte, um conteúdo digital ou outro, cuja autenticidade é garantida com base na tecnologia blokchain.

(3) Empresas de «tecnologia financeira».

(4) Auer et al. (2022) Transacções de Cripto e de Bitcoin, evidências da participação de clientes de retalho. Banco de Compensações Internacionais, disponível em https://www.bis.org/publ/work1049.htm

(5) Utilizamos esta designação para referir os «investidores não institucionais», ou seja, pequenos investidores. Compradores sem formação específica, geralmente pouco conscientes do risco.

(6) Actividade de produção de «criptoactivos» que recorre a capacidade computacional, geralmente crescente. Ou seja, a cada «criptomoeda» produzida, a capacidade computacional necessária para a produção das próximas aumenta.

(7) Normalmente designa-se por «activo tóxico» aquele que não está associado a um colateral, a uma garantia ou cujo valor excede em muito a garantia real a que está associado e que é invendável pelo valor a que consta nos balanços de uma empresa ou de um banco. In MILITANTE

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