Miguel Tiago
Piscando o
olho aos yuppies, por um lado, e aos anti-sistema, por outro, a imprensa e os
promotores das chamadas «criptomoedas» tentam há anos convencer os
anticapitalistas incautos de que esses activos representam um rude golpe no
sistema capitalista por não terem relações com estados nem empresas e, ao mesmo
tempo, cativam os adeptos Rothbard e Hoppe (1), do liberalismo económico e do
capitalismo em geral, aliciando os investidores com um activo que representa o
corolário da financeirização da economia e da apropriação da riqueza através de
mecanismos de especulação pura e dura.
A
tecnologia não tem sinal político, a sua aplicação sim
Para que
possamos aprofundar uma reflexão sobre a utilidade e os papéis económico e
político destes «activos», importa antes de mais enquadrar o assunto do ponto
de vista técnico. Partimos do princípio, para a construção de um pensamento
marxista sobre activos imateriais baseados em criptografia pública, tal como em
diversas outras tecnologias, de que a técnica e a tecnologia em si mesmas são isentas
de sinal político e de uma função específica ao serviço desta ou daquela
classe. Tal como encaramos as restantes tecnologias, o conhecimento científico
e a técnica não possuem uma marca determinística sobre o papel que podem
desempenhar em cada estado de desenvolvimento da sociedade humana.
Virtualmente,
podemos considerar que as tecnologias têm um potencial de aplicação adequado à
hegemonia de cada momento histórico e que, consoante a correlação de forças, a
aplicação de uma tecnologia pode ser tanto conservadora, como revolucionária.
Esta visão é meramente ilustrativa, pois sabemos que, na dialéctica constante
que caracteriza a História da Humanidade, também a tecnologia cria novos pontos
de equilíbrio da hegemonia pelas alterações que provoca nas forças e no modo de
produção, pelo que o seu potencial – conservador ou revolucionário – não é
estático.
Aqui
chegados, no caso dos «criptoactivos», podemos concluir que a tecnologia em si
mesma é isenta de um sinal político. No caso, as tecnologias desta família
podem assegurar e certificar a autenticidade de um qualquer conjunto de linhas
de programação, de dados e conteúdos digitais, ou qualquer outro «activo»
imaterial baseado em informática, como tem sido o caso dos «NFT» (non-fungible
tokens) (2) e essa certificação, tal como está construída, tem como
objectivo principal a salvaguarda da autenticidade do conteúdo digital. Claro
que num contexto como o actual, uma tecnologia de certificação dessa natureza é
colocada inteiramente ao serviço da acumulação e da especulação. De certa
forma, funciona como uma espécie de tecnologia capaz de atestar a autenticidade
de um activo, de forma supostamente próxima do inviolável.
Imaginemos
uma tecnologia capaz de atestar com aproximadamente 100% de certeza, e impassível
de falsificação, a autenticidade de um Van Gogh e capaz de registar todas as
transacções a que foi sujeita essa obra. Essa tecnologia considerada por si só
pode ser útil. Por exemplo, para o estudo da História da Arte. Contudo, no
mundo do mercado capitalista que usa a obra de arte para permitir a fuga fiscal
e o parqueamento de activos com vista à especulação, essa tecnologia serviria
principalmente para assegurar o potencial especulativo da obra de arte.
As
utilizações e as relações dos «criptoactivos» com a economia real
A
disponibilização nos mercados de «activos» baseados em criptografia, tal como a
conhecemos hoje, não passa de um grande esquema de especulação, nas mãos de
financeiras que visam escapar a toda a regulação. Contudo, também será útil
ponderar sobre que tipo de regulação e regulamentação poderia ser aplicada e
com que fins.
Antes
disso, importa ainda clarificar que muitos «criptoactivos» têm sido
deliberadamente confundidos com «moedas» quando não correspondem ao conceito de
moeda tal como o concebemos até aqui. Desde há muito que a moeda representa uma
dívida emitida, geralmente por um estado, por um soberano, que assegura pagar
ao portador um determinado valor por essa moeda. A moeda como a conhecemos é
aceite como «mercadoria universal» porque tem associada a si uma das mais
estáveis dívidas do sistema económico: a dívida soberana. Mesmo depois do
choque Nixon (1971-1973), em que o dólar deixa de representar uma dívida em
ouro, a robustez da dívida soberana não foi abalada. Na verdade, o desligamento
total do dólar perante o ouro gerou uma moeda estritamente fiduciária,
altamente especulativa e desligada do valor de uma economia real, mas ainda
assim, ligada à dívida soberana de um estado.
Ao mesmo
tempo, também não se podem comparar as erradamente chamadas «criptomoedas» com
valores mobiliários, na medida em que não existe qualquer relação entre uma
«criptomoeda» e um activo de uma empresa, como existe, por exemplo, no caso das
acções emitidas por uma sociedade. Isso não significa que as acções ou outros
valores mobiliários não possam ser emitidos com base em tecnologia blockchain.
Uma
empresa pode actualmente, emitir acções ou outros títulos de valores
mobiliários sob o formato de NFT ou outro formato com recurso à tecnologia blockchain,
tal como pode um estado emitir uma moeda ou um título de dívida com recurso a
essas tecnologias. Isso não muda a essência do que foi emitido: um valor
mobiliário, no primeiro caso; uma moeda ou um título de dívida no segundo.
Na
prática, as chamadas «criptomoedas» são apenas emissões privadas de um activo
cuja autenticidade é provada. Económica e financeiramente isso não difere muito
de um cidadão privado ter uma impressora única no mundo e emitir uma moeda cuja
autenticidade é impassível de forjar. Ou seja, o valor que essa moeda tem é
estritamente fiduciário. Mas neste caso, a confiança situa-se no patamar da
crença e da fé, na medida em que não existem bens ou rendimentos associados à
emissão dessa moeda.
No caso
das chamadas «criptomoedas» e dos «criptoactivos» descritos como «autónomos»,
ou «independentes» do sistema financeiro e dos bancos centrais, o seu valor em
moedas soberanas é estritamente relacionado com a sua oferta e procura no
mercado, não tendo qualquer garantia, colateral, dívida ou propriedade
associada.
O
mercado desregulado – a euforia dos tubarões
A
volatilidade de um activo totalmente desmaterializado é demasiado grande para a
própria banca convencional e regulada manifestar interesse na incorporação de
mercados e transacções de «criptoactivos» sem respaldo material. De certa
forma, essa não incorporação dos «critpo» no mercado financeiro convencional é
o que os torna tão apetecíveis para os tubarões da finança, para as economias
paralelas dos tráficos e para os detentores de empresas fintech (3) sem
licença bancária.
Do total
de novos «investidores» em mercados de «cripto», mais de três quartos perde
dinheiro. Em recente artigo do Banco de Compensações Internacionais (4), ficam
claros os números do desastre, após o pico de valor das «criptomoedas» em 2021:
73 a 81% dos participantes do mercado perderam parte ou totalidade do
investimento inicial. O mesmo artigo também demonstra que a esmagadora maioria
dos «investidores» de retalho entra no mercado de «criptoactivos» com base nos
preços e não com base em ideais de descentralização da moeda.
O mercado
de transacções de «cripto» é obscuro, desregulado, não respaldado por bens
materiais ou sequer rendimentos de capital. Essas propriedades, no entanto, são
parte significativa do seu valor especulativo e financeiro, na medida em que
permitem o funcionamento de um mercado sem qualquer vigilância e sem quaisquer
obrigações por parte dos operadores e dos «tubarões» desse mercado. Na verdade,
estamos perante um mecanismo de concentração de rendimentos, de especulação
desmedida e de desmaterialização e financeirização absoluta. A exposição de
clientes de retalho (5) a um produto desregulado, altamente volátil e sem
respaldo ou garantias representa um perigo para esses clientes que não se repercute
ainda, de acordo com o FMI, no sistema financeiro na medida em que este não
incorporou esses mercados. Ou seja, a bolha especulativa concentra-se nas mãos
dos milhões de clientes que entregam parte das suas poupanças a um grupo
incógnito de empresas e especuladores que arrecadam tanto mais rendimento
quanto mais novos clientes entrem no esquema.
Colocando
de lado os impactos económicos (materiais) e ambientais da «mineração» (6) de
«criptos», podemos identificar os impactos da concentração de riqueza num
mercado absolutamente improdutivo e especulativo. A criação de uma
«criptomoeda», como a bitcoin, por exemplo, não gera a criação de riqueza, mas
sim um mecanismo de apropriação de riqueza produzida em outras actividades.
Nesse
aspecto, a «criptomoeda» não difere de uma unidade de participação de um fundo
de investimento imobiliário, por exemplo, que não visa outro objectivo senão a
apropriação de riqueza gerada em outras actividades produtivas. Contudo, a
«criptomoeda» não está indexada nem respaldada por quaisquer rendimentos
prediais ou de capital, sendo que o seu valor é ainda mais volátil.
Neste
momento, após o pico de 2021 em que o valor total do mercado de «criptomoedas»
ascendeu a 3 biliões (3x1012) de dólares, esse mercado vale 800 mil
milhões de dólares, o que significa que representa hoje menos de um terço do
valor que atingiu em 2021, no auge da especulação em torno das «cripto». A
destruição desse valor no mercado, significa todavia que esse dinheiro foi
perdido e essas perdas concentram-se nos clientes de retalho, nos tais cerca de
80% de «investidores» que perde dinheiro em cripto e que foi concentrado nas
mãos dos restantes «investidores», os verdadeiros tubarões do mercado
financeiro mais puro que existe, na medida em que é o mais «livre», o mais
desregulado, o mais selvagem. O mercado financeiro das «cripotomoedas» é o
exemplo magno do funcionamento de um mercado sem intervenção do estado e
representa o sonho dos especuladores: a financeirização total dos activos, a
definição do valor do activo estritamente em função da especulação e a ausência
de garantias de capital real.
O
«activo» é falso mas o dinheiro perdido é verdadeiro
A forma
airosa como o Governo de maioria absoluta PS – no essencial, acompanhado por
PSD, CDS, CH e IL – finge responder a
esta burla de escala global visa criar a ilusão de que existe uma actuação,
quando existe apenas um «virar a cara» e «assobiar para o lado» enquanto se
cobra uma taxa liberatória de 28% nas mais-valias obtidas por transacções de
«criptoactivos» mantidos por períodos inferiores a um ano e se cobra imposto de
selo aos intermediários. Ou seja, não existe qualquer supervisão sobre as
operações em concreto, sobre os destinos e origens dos capitais envolvidos, nem
qualquer fiscalização dos «activos» transaccionados. O governo sabe que está a
sancionar uma burla e, de certa forma, a torná-la lícita através da taxação,
quando o que verdadeiramente se impõe é a proibição de burlar e a fiscalização
que o impeça.
O
«activo<« é falso, mas o dinheiro perdido é verdadeiro e o Governo acaba de
legalizar, aliás seguindo o mote da União Europeia, uma burla através de uma
prática lesiva dos interesses dos pequenos «investidores» e da economia.
Imaginemos que o Governo cobrava impostos a um esquema de Ponzi e que, a partir
daí, lavava as suas mãos perante as perdas dos burlados.
Um
«mercado» a regular ou um «mercado» a desincentivar e extinguir
Uma praça
financeira totalmente desregulada e cujo «valor» assenta nessa
desregulamentação não passa de uma forma de apropriação de riqueza gerada pelo
trabalho para a sua concentração nas mãos de novos ou velhos parasitas. Ao
mesmo tempo, a institucionalização e regulamentação de um mercado de
«cripoactivos» só pode levar a um de dois desfechos:
a) A
contaminação do sistema financeiro convencional pela volatilidade dos activos
tóxicos, que, no essencial são todos os «criptoactivos» (7) se considerados no
longo prazo.
b) A
conversão dos «criptoactivos» em activos financeiros iguais aos restantes, o
que, não os isentando de constituírem um activo meramente especulativo, lhes
retira o exotismo e os impede de serem transaccionados sem qualquer vigilância,
fiscalização ou regulação e supervisão financeira.
O risco de
a primeira possibilidade se materializar é demasiado grande para valer a pena
arriscar a segunda. O sistema financeiro não precisa de mais «produtos
financeiros complexos» para angariar os milhões dos seus clientes de retalho e
os trabalhadores não precisam de alimentar mais parasitas e seus esquemas de apropriação
e concentração dos rendimentos do trabalho. Ao mesmo tempo, a exposição de
«clientes de retalho», pequenos investidores sem preparação para intervenção em
mercados altamente especulativos à voragem dos burlantes das «criptomoedas»
justifica o investimento político dos governos no desincentivo à participação
nesses mercados com vista à sua extinção.
É por isso
que o mercado das «cripto», sendo apenas uma nova expressão da economia de
casino da alta finança, não precisa de estímulo nem regulamentação, precisa de
ser desincentivado, extinto e, se possível, levar com ele os restantes
mecanismos de extorsão, lícitos ou ilícitos, regulamentados ou não
regulamentados, da banca, esteja ela na sombra ou não.
Notas
(1) Murray
Rothbard e Hans-Herman Hoppe, teóricos da absolutização da propriedade privada
e da total substituição dos estados e serviços públicos por prestadores
privados.
(2) NFT –
é um «bem», uma obra de arte, um conteúdo digital ou outro, cuja autenticidade
é garantida com base na tecnologia blokchain.
(3)
Empresas de «tecnologia financeira».
(4) Auer et
al. (2022) Transacções de Cripto e de Bitcoin, evidências da participação
de clientes de retalho. Banco de Compensações Internacionais, disponível em
https://www.bis.org/publ/work1049.htm
(5) Utilizamos
esta designação para referir os «investidores não institucionais», ou seja,
pequenos investidores. Compradores sem formação específica, geralmente pouco
conscientes do risco.
(6)
Actividade de produção de «criptoactivos» que recorre a capacidade
computacional, geralmente crescente. Ou seja, a cada «criptomoeda» produzida, a
capacidade computacional necessária para a produção das próximas aumenta.
(7)
Normalmente designa-se por «activo tóxico» aquele que não está associado a um
colateral, a uma garantia ou cujo valor excede em muito a garantia real a que
está associado e que é invendável pelo valor a que consta nos balanços de uma
empresa ou de um banco. In MILITANTE
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