Por TADEU VALADARES*
Palestra no Observatório Político da Comissão Brasileira Justiça e Paz.
Agradeço ao Observatório Político, em especial ao amigo Gilberto, o convite para que trocássemos impressões sobre a guerra na Ucrânia, origens, impasses e horizontes. Tenho certeza de que o diálogo que se seguirá à minha apresentação nos enriquecerá. De certa forma, retomo hoje o fio da reflexão que me levou a conversar com vocês ano passado, nem bem iniciada a operação militar especial da Rússia, vista pelo governo de Kiev como injustificável invasão de caráter imperial.
Todos nós decerto já lemos bom número de artigos, notícias de jornal, ensaios de interpretação desta guerra. Todos já vimos vídeos e ouvimos programas radiofônicos a respeito. Todos já temos, portanto, opinião razoavelmente formada sobre o conflito mais violento, em território europeu, desde o término da Segunda Guerra Mundial. Porque dou isso por seguro, não me proponho a ir além do indispensável para melhor debatermos o que opõe a Federação Russa à Ucrânia, aos Estados Unidos, à OTAN e à União Europeia.
Ainda assim, algumas referências básicas são imprescindíveis.
Para mim, as origens da guerra remontam ao longo e ainda inconcluso processo de expansão da OTAN a Leste, iniciado nos anos 90 do século passado, quando a organização atlantista se aproveitou de oportunidades criadas pelo vácuo decorrente do desmoronamento da União Soviética e do campo imprecisamente chamado socialista real.
Também destaco: desde 2008, quando participou da cúpula da OTAN em Bucareste, o presidente Putin passou a se referir com crescente ênfase às ‘linhas vermelhas’ que, se ultrapassadas, em particular quanto à Georgia e à Ucrânia, terminariam em eclosão de grave crise entre a Rússia e a maior aliança militar do Ocidente, organização que se proclama defensiva, mas que, na prática, revela-se notadamente expansionista. Desde 2008, portanto, a OTAN foi alertada para o risco envolvido em ignorar os interesses de Moscou na moldura maior da segurança e da estabilidade europeias.
Seis anos depois, o golpe contra o presidente Yanukovich, também chamado ‘revolução colorida da praça Maidan’, levou à anexação, pela Rússia, da península da Crimeia; à deterioração completa dos vínculos entre Moscou e Kiev; à intensificação da guerra civil no Donbass, ‘oblasts’ de Donetsk e de Lugansk; e, finalmente, à crucial iniciativa de Vladimir Putin: dar início à operação militar especial, decisão que levou em conta, inclusive, o fracasso dos acordos de Minsk. Em 24 de fevereiro do ano passado, a Rússia invadiu a Ucrânia e incorporou à sua soberania os dois ‘oblasts’ insurgentes.
Importante não esquecer: naquele mesmo mês, exatos 20 dias antes de iniciada a operação militar especial, o chefe de Estado russo visitou o presidente Xi Jinping em Pequim. Naquela oportunidade, anunciaram o estabelecimento de uma parceria estratégica sem limites. Esse acontecimento tem enorme peso geopolítico e geoestratégico por de fato constituir o primeiro passo no caminho da criação de um polo euroasiático que se vê e se apresenta como alternativa à ‘ordem internacional baseada em regras’ por intermédio da qual os Estados Unidos exerceram unilateralismo pleno ao longo das duas primeiras décadas do pós-Guerra Fria.
Dito isso, cabem algumas perguntas.
O que está sendo gerado pela guerra na Ucrânia, quando a relacionamos com a ‘ordem internacional baseada em regras’, sinônimo, hoje, do hegemonismo americano ameaçado? Aparentemente, a guerra na Ucrânia, quando inserida na moldura maior da metamorfose em curso do sistema internacional, sinaliza o ingresso do conjunto dos estados e sociedades – a chamada comunidade internacional – em nova etapa, tendencialmente multipolar. Esse processo se mostrou de forma mais clara a partir da virada do século, mas ainda não alcançou o seu ponto de inflexão.
Esse ponto, uma vez ultrapassado, indicará que o jogo está jogado, que não haverá volta atrás, que todos os estados e sociedades deverão atuar imersos num novo tipo de arranjo internacional. A ordem criada ao final da II Guerra estará superada. Trata-se, portanto, de uma crise que se desenvolve no prazo longo, um processo cuja dinâmica é oscilante, mas cujo vetor é, em última análise, a transição de um tipo de hegemonia para outra. O que começou na virada do século pode vir a ter seu ritmo acelerado inclusive em função dos rumos que tome a guerra na Ucrânia.
Independentemente do nome que possamos dar a essa dinâmica contraditória – que alguns chamam de nova guerra fria; outros, de transição de hegemonia; outros, ainda, de multipolaridade em construção –, cabe refletir, por mais que se nos escape uma conclusão segura, se a guerra na Ucrânia turbinará essa transformação ‘in fieri’ do sistema global ou, na outra ponta e dependendo do resultado do conflito militar, terminará por debilitá-la.
Essas perguntas, dúvidas e questões são legítimas. As respostas todas, entretanto, neste momento ainda não passam de tentativas que em comum apenas parecem indicar o fortalecimento do que, se confirmada, será uma ruptura estrutural da ‘ordem liberal’ que funciona como sinônimo do sistema internacional eletivamente afim com a fragilizada hegemonia americana. Caso essa dinâmica prossiga em sua trajetória de fortalecimento, a decadência da hegemonia americana deixará de ser objeto de debate para se tornar inegável objeto de consenso. Então sim, o ‘ponto de inflexão’ haverá sido alcançado.
Como avaliar e interpretar o que está acontecendo desde o início da guerra na Ucrânia? Como articular essa dinâmica bélica com a transição de um tipo de hegemonia a outro no marco maior da geopolítica e da economia mundiais? Como ver a guerra na Ucrânia a partir da multipolaridade emergente, e como analisar essa multipolaridade que se faz presente na guerra na Ucrânia?
Como levar devidamente em conta todos os grandes atores da tragédia que é a guerra entre a Rússia e a Ucrânia, e como perceber de maneira mais ou menos adequada os rumos dos demais integrantes do sistema internacional, em particular as potências médias que vivem o drama cifrado na transição do unilateralismo e da unipolaridade para uma multipolaridade e um multilateralismo de novo tipo?
Como não deixar de considerar – ao menos como problema – que na época atual o modo de produção capitalista se apresenta, no plano das formações econômico-sociais, como o avatar mais recente do antigo imperialismo? Como não problematizar o novo representado pelo instigante fato de que todos os grandes atores envolvidos direta ou indiretamente na guerra russo-ucraniana representam variantes distintas de um mesmo capitalismo planetário, cada uma dessas variantes regida por regimes políticos também distintos e conflitantes?
Se nosso foco de atenção estiver– como nesta exposição – sobretudo centrado no conflito que opõe Moscou a Kiev, ainda assim as dificuldades analíticas são gigantescas. Queremos pensar com clareza, mas de fato vivemos sob a pesada ‘neblina da guerra’. Isto é, submergidos num tipo de opacidade cujo mais notável efeito cotidiano é a ‘morte da verdade’ como resultado das estratégias de comunicação de massa dos contendores, tanto os que se combatem diretamente quanto os outros. Essa desorientação programada, imposta pela grande mídia global e suas sucursais regionais, dissemina e exacerba paixões ideológicas e políticas que no limite se tornam irracionais. A guerra passa a ser lida e vivida a partir de lentes maniqueístas, as nuances com que o pensamento crítico ou cético trabalha passando a ser sistematicamente ignoradas.
Apesar de tudo, algo é relativamente claro: no conflito que opõe a Rússia ao quarteto que não é o de Alexandria, mas sim o formado pelos Estados Unidos, Ucrânia, OTAN e União Europeia, há um sexto ator, personagem discreto, cuidadoso, perseverante: a China sob a liderança do presidente Xi Jinping. A República Popular, com notáveis sutileza e determinação, conseguiu a proeza de propor o Plano de Paz em 12 pontos e, simultaneamente, continuar fortalecendo a parceria estratégica sem limites. Noutros termos, ao atuar de maneira sofisticadamente calculada, Pequim segue apoiando Moscou. Essa operação que superficialmente tem algo de malabarismo, no mais profundo defende interesses próprios. Pequim sabe que derrota russa porá a perder seu projeto contra-hegemônico, a marca distintiva da estratégia chinesa. Ou, no mínimo, o debilitará de maneira talvez irreparável. Derrota russa, sabem os de Pequim, permitirá aos Estados Unidos concentrar esforços próprios e ‘atlânticos’ na resolução do ‘problema chinês”.
Outro ponto relativamente claro: no conflito russo-ucraniano cada um dos grandes atores ocidentais desempenha papel cuidadosamente determinado. Um espetáculo de divisão do trabalho, diria Adam Smith. Assim, ao regime de Kiev cumpre fornecer o oficialato e a tropa combatente modernizada de acordo com os padrões da OTAN desde antes do golpe da praça Maidan. Aos integrantes da aliança transatlântica cabe apoiar militar, política, econômica e diplomaticamente o governo Zelensky. À União Europeia compete tarefa dominada por uma lógica expansiva: por meio de seguidas rodadas de coerção econômica, pôr a economia russa de joelhos. Os resultados obtidos até agora não chegam a ser espetaculares, longe disso.
Correndo por fora, mas na verdade não tão por fora assim, incumbe à grande mídia ocidental e às suas ramificações no Sul Global pautar corações e mentes. Com isso, cabe-lhe evitar a erosão do apoio passional-popular à versão da guerra como sinônimo maniqueísta da brutalidade imperial russa e do desequilíbrio psíquico de Vladimir Putin. Até agora, a coisa tem funcionado a contento. Vista assim, com lentes multifocais, a guerra é a ilustração histórica mais recente e completa do conceito de guerra total, fenômeno altamente complexo, mas sobretudo perigoso ao extremo. Perigoso ao extremo porque a guerra assume caráter existencial. A vitória é questão de vida ou morte para ambos os estados envolvidos e para as respectivas sociedades.
Nessas circunstâncias, ao menos três níveis de riscos são detectáveis. O risco mínimo é que o desfecho da guerra não conduza a alguma forma de paz, mesmo se ‘paz injusta’, ao estilo de Versalhes. Em outras palavras, o risco mínimo seria a metamorfose da guerra em conflito crônico ou mesmo temporariamente congelado. Ou seja, o impasse atual não seria superado, mas simplesmente substituído por outro. Desfecho instável sob a forma de guerra larvar ou de conflito congelado.
Essa hipótese pode vir a se configurar ainda este ano, antes da chegada o inverno setentrional, ou no ano próximo, caso a contraofensiva ucraniana se esgote mais rapidamente ou menos, isto é, no tempo que se conta em semanas ou em meses. Tal cenário ameaça vir a se concretizar caso as forças russas, embora vitoriosas em sua resistência à contraofensiva de Kiev, venham a sofrer desgaste de tal monta que as torne incapazes de encetar sua própria contraofensiva. Dito de outra forma: se vitoriosa a Rússia, seu triunfo estará longe da imagem desenhada por Vladimir Putin ao anunciar a operação militar especial. Esse, em linhas gerais, o que seria o chamado risco mínimo.
Mas há risco maior: o de a guerra se intensificar brutalmente ao longo dos próximos meses, o que poderá levar os beligerantes a duplicarem seguidamente suas apostas, nesse processo construindo espiral de violência que pode escapar ao controle. Nesse caso, a Ucrânia receberia ainda mais armamentos e recursos tecnológicos e militares da OTAN, sobretudo armas de longo alcance e aviões de combate mais e mais avançados. Esse segundo nível de risco, alcançado o patamar extremo em matéria de guerra convencional, poderia dar um salto de qualidade seja por decisão de um dos lados ou de ambos, ou mesmo devido ao acaso. O conflito direto, que hoje está geograficamente limitado a dois países, extravasaria até alcançar todo o teatro europeu.
Em princípio, nem a OTAN nem a Rússia desejam a ampliação territorial da guerra. Quanto a Kiev, a opção por tentar envolver a aliança atlântica diretamente no embate contra Moscou talvez venha a ser necessidade quase imperativa. Isso, se os militares e o governo, em algum momento, caso fracasse a contraofensiva ora em curso, chegarem à conclusão de que o desmoronamento do regime instaurado pelo golpe de 2014 é iminente, prefigurando catástrofe total para o Estado e a sociedade. O que pode acarretar esse cenário de ‘risco médio’, se chega a configurar-se como realidade efetiva? Em poucas palavras, que o cenário de risco máximo o suceda.
Especulo: a passagem de guerra com armas convencionais para guerra com armas nucleares táticas se tornaria, na lógica puramente militar, algo viável, talvez até mesmo desejável. Mas essa ‘mudança de qualidade’, esse primeiro passo nuclear, por sua vez logo abriria as portas para a ascensão máxima: o emprego pelas quatro potências nucleares em combate direto – os Estados Unidos, o Reino Unido, a França e a Rússia –, das respectivas tríades estratégico-nucleares compostas pelos mísseis instalados em silos, em submarinos nucleares e em aviões especialmente desenhados para esse tipo de operação. A Ucrânia e todos nós, na hipótese de consumada essa megacatástrofe, seríamos reduzidos a mera nota de pé de página.
Apesar das declarações algo frequentes, emitidas por acadêmicos, especialistas, analistas civis e militares tanto russos quanto ocidentais, em defesa do uso de armas nucleares no contexto gerado pela dinâmica da guerra na Ucrânia, meu sentimento continua a ser – algo ingênuo, talvez -que a lógica da sobrevivência da espécie primará sobre a lógica da destruição mútua assegurada. O impensável da guerra nuclear, teorizado por Herman Khan e outros, continuará sendo teoria. Se transformado em história significará, com a chegada do inverno nuclear, a extinção da espécie ou sua volta a um estado deixado muito atrás, quando um certo símio passou à condição ilusória de homo sapiens.
Chego à parte final da minha fala. Ela se centrará sobretudo em texto circulado dia 23 de junho passado por um dos mais renomados teóricos da escola realista de relações internacionais, John Mearsheimer (postado no Brasil pelo site A Terra é Redonda). Ao longo desse ensaio analítico, sugestivamente intitulado “A escuridão pela frente: para onde vai a guerra na Ucrânia’, John Mearsheimer considera que apenas três atores são efetivamente decisivos: a Rússia, a Ucrânia e os Estados Unidos. Descarta dessa equação a OTAN e a União Europeia porque, no seu entendimento, no referente à guerra na Ucrânia os rumos que Washington dita são disciplinadamente seguidos tanto pela OTAN quanto pela União Europeia.
No essencial, alerta o professor, a aliança ocidental – de fato, Washington – decidiu impor a Moscou uma derrota estratégica da qual dificilmente se recuperará. Para tanto, os Estados Unidos se utilizam da Ucrânia como intermediário. A Rússia, uma vez vencida, deixará em definitivo de ser uma grande potência. Para os EUA, no limite ou idealmente, esse triunfo ensejará a desejada mudança do regime russo e o surgimento de outro, estruturalmente favorável ao Ocidente. Melhor ainda: da derrota russa poderá até mesmo decorrer a fragmentação do país. O fantasma da Iugoslávia passaria a rondar Moscou. O maximalismo transatlântico não poderia haver sido expressado de forma mais contundente.
Por outro lado, desde sua participação em 2008 na cúpula da OTAN em Bucareste, Putin passou a sublinhar as linhas vermelhas que, ultrapassadas pela aliança atlântica, mais cedo ou mais tarde levariam a forte reação russa. Já então, 15 anos atrás, Vladimir Putin tinha perfeita consciência dos objetivos estratégicos da OTAN ‘vis-à-vis ‘ a Federação Russa. Mais recentemente, em fevereiro passado, em discurso marcado por seu caráter geopolítico, enfatizou: ‘A elite ocidental não fez segredo de seu objetivo: a derrota estratégica da Rússia’. Em seguida, emendou: ‘Isso representa uma ameaça existencial para o nosso país’.
Decorrência direta do dito pelo presidente da Federação Russa: só resta a Moscou enfrentar o inimigo e vencê-lo. Mas qual é o escopo dessa vitória contra a ‘ameaça existencial’ construída ao longo de décadas pela ‘elite ocidental’? Para Vladimir Putin, a Rússia será vitoriosa: (i) se conseguir transformar a Ucrânia num Estado neutro, desmilitarizado; (ii) se mantiver sob sua soberania os territórios já ocupados e anexados, hoje equivalentes a 23% da Ucrânia pré-2014; e (iii) se puder exercer uma espécie de ‘direito de proteger’ as populações ucranianas que, continuando no que sobrará do país, sejam compostas por russos étnicos e ucranianos que falem russo com fluência. Um quarto ponto, associado ao primeiro, seria a ‘desnazificação’ da Ucrânia. Conclusão: o maximalismo russo é tão evidente quanto o seu oposto, o maximalismo transatlântico.
Mas ainda temos que considerar um terceiro maximalismo, o ucraniano. Kiev tem como meta invariavelmente proclamada a recuperação de todos os territórios perdidos desde 2014, incluída a península da Crimeia, onde Sebastopol sedia a mais importante base naval russa. Ou seja, a missão das forças ucranianas é reconquistar 23% do território nacional.
Tanto o maximalismo dos Estados Unidos/OTAN/União Europeia quanto o da Ucrânia silenciam, por motivos óbvios, algo que de possível pode passar a provável. Caso a contraofensiva de Kiev fracasse, e a Rússia esteja em condições de, então, montar sua própria contraofensiva, o resultado de eventual avanço militar russo poderia chegar a ser a conquista e anexação de outros 4 ‘oblasts’: Dnipropetrovski, Kharkhiv, Mykolaiv e Odessa. Todos com significativas populações russo-étnicas e ucranianos fluentes em russo. Nesse caso, em meses mais, talvez em ano mais, a Federação Russa poderia vir a controlar 43% do território ucraniano. A conformação desse cenário ideal para os russos reduziria a Ucrânia a um estado amputado, disfuncional. A Ucrânia passaria a ser sombra de si mesma. Tal estado reduzido, claro está, seria incapaz, até onde se pode imaginar, de voltar a ameaçar a Rússia.
Simplificando brutalmente: a moldura conceitual e retórica que orienta as ações da OTAN/Estados Unidos, da Ucrânia e da Rússia são três concepções extremadas do que significa a vitória militar. Duas delas, até agora convergentes. A terceira, a russa, lhes é simetricamente oposta. À luz desse quadro cuidadosamente montado por John Mearsheimer, o realista americano entende que vitória ucraniana é algo praticamente impossível. Mas, dados o peso e a determinação dos EUA e da OTAN, e também levando em conta o ânimo combativo das forças ucranianas, a Rússia não tem como alcançar vitória decisiva, vitória com caráter definitivo.
O triunfo possível dista imensamente da vitória proclamada em sua versão maximalista por Vladimir Putin, iniciada a operação militar especial. Vitória russa virá porque Moscou desfruta de vantagens insuperáveis. Mas vejamos, quais seriam essas vantagens?
A fase atual da guerra resulta da passagem, este ano, de guerra de movimento para guerra de atrito. Numa guerra de atrito, três fatores são normalmente preponderantes: a disposição de guerrear; as dimensões das populações envolvidas; e a proporção entre as forças e meios empregados, por um lado, e a taxa de letalidade sofrida pelas respectivas forças armadas. Como na guerra na Ucrânia o inimigo é visto como ameaça existencial, a disposição de guerrear dos ucranianos mais ou menos corresponde à dos russos. Mas a população da Rússia, segundo dados de 2021, é de 143 milhões. A da Ucrânia, 43 milhões. Ou seja, a russa é três vezes e meia superior à ucraniana. Desde então, oito milhões de ucranianos deixaram o país. Desses oito milhões, três migraram para a Rússia. Ademais, algo como quatro milhões habitam os territórios hoje sob soberania russa. A vantagem de Moscou sobre Kiev, em termos populacionais, seria atualmente de cinco para um.
Quanto à proporção entre forças e meios empregados versus respectivas taxas de letalidade sofrida, a informação existente é imprecisa e totalmente divergente. Cada lado minimiza suas perdas e multiplica as do inimigo. Entretanto, como a guerra é de atrito, torna-se razoável supor que as perdas ucranianas sejam muito superiores às russas. Para John Mearsheimer, isso é praticamente certo porque a Rússia dispõe de muito mais artilharia e de superior cobertura aérea. Numa guerra de atrito, a artilharia é a arma de longe mais importante. Se ainda por cima dispõe de forte cobertura aérea, essa vantagem tende a se revelar decisiva. As informações disponíveis, afirma Mearsheimer, pemitem calcular que a vantagem russa varia de no mínimo 5 para 1 até, no máximo, 10 para 1.
Tendo isso em conta, as perdas ucranianas seriam ao menos o dobro das russas. Ademais, há uma ‘regra prática’ segundo a qual, ‘coeteris paribus’, um exército que ataca deve dispor de três vezes mais tropas e equipamento do que um exército que se defende. Tudo levado em conta, o teórico realista conclui: ‘A única esperança de Kiev para vencer a guerra é que o ânimo bélico de Moscou entre em colapso. Mas isso é improvável, dado que a liderança russa vê o Ocidente como um perigo existencial’.
Porque essa é a sua visão, o polemólogo americano não acredita que no futuro previsível haja como a diplomacia conseguir restabelecer a paz. A conjugação dos maximalismos russo, ucraniano e americano bloqueiam esse caminho, a despeito dos esforços do Papa, de Lula, da China e da Turquia, da União Africana e até mesmo, por curto tempo, de Israel.
Para o teórico realista, portanto, só se pode contar com o que não deixa de ser um resto, uma sobra: “A melhor saída possível é a guerra se tornar um conflito congelado em que cada lado continuará buscando oportunidades para debilitar o outro; em que estará presente o perigo permanente de um retorno às hostilidades’.
Com essa avaliação muito sombria e debatível, cuja linha de horizonte sugere impasse permanente, ainda que com redução temporária da violência e dos riscos maiores gerados pelo conflito, concluo minha apresentação.
*Tadeu Valadares é embaixador aposentado.
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