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22 de julho de 2023

O triunfo da nova Europa

 Dois textos a ler

1) A  TASS deu conta hoje de uma declaração de Putin numa reunião de trabalho do Conselho da Segurança russo em que é referido poderem estar em andamento planos para usar uma unidade militar conjunta polaca-lituana-ucraniana como força de ocupação nos territórios ucranianos ocidentais, e quaisquer forças polacas que entrarem em Lviv certamente permanecerão lá.

"Não posso deixar de comentar o que acabou de ser dito [pelo diretor do Serviço de Inteligência Estrangeira da Rússia (SVR), Sergey Naryshkin] e sobre os relatórios de imprensa que surgiram sobre os planos para criar uma chamada unidade polaco-lituana-ucraniana. Não estamos a falar aqui numa tripulação heterogênea de mercenários - já existem muitos deles lá [na Ucrânia] e eles estão sendo destruídos - mas sim sobre uma formação militar regular, bem oleada e bem equipada que está planeada para ser usada em operações no território da Ucrânia", disse Putin.
"Em particular [isso está sendo feito] supostamente para garantir a segurança da Ucrânia ocidental contemporânea, mas na verdade - se você chamar as coisas por seus nomes próprios - para a ocupação subsequente desses territórios. Afinal, a perspectiva futura é óbvia; se unidades polacas entrarem em Lviv, por exemplo, ou em alguns outros territórios na Ucrânia, elas vão lá permanecerão. E permanecerão lá para sempre", acrescentou.

Aulas de história para a Polónia
Segundo o chefe de Estado russo, “isto não representará nada de novo”, lembrando que após a derrota da Alemanha e das outras Potências Centrais na I Guerra Mundial, as unidades polacas ocuparam Lviv e terras adjacentes, que faziam então parte da Áustria-Hungria.
"Instigada pelo Ocidente, a Polónia aproveitou a tragédia da Guerra Civil Russa para anexar certas províncias historicamente russas. Nosso país, que então passava por um período difícil, foi forçado a assinar o Tratado de Riga em 1921 e reconhecer de fato a alienação de seus próprios territórios", observou Putin.
Além disso, mesmo antes de 1920, a Polónia conquistou parte da Lituânia - a região de Vilna, que inclui a atual Vilnius.
"Juntamente com os lituanos, eles [os polacos] estavam supostamente a lutar contra o chamado imperialismo russo, mas assim que surgiu a oportunidade, eles imediatamente “esculpiram” um pedaço de terra de seu vizinho", observou o presidente russo. Ele ainda referiu como "a Polónia também participou da divisão da Checoslováquia resultante do acordo de Munique com Hitler em 1938", ocupando completamente Cieszyn Silésia.
"Nas décadas de 1920 e 1930, os chamados Kresy Wschodnie da Polónia ['Eastern Borderlands' em polaco - TASS] - e isso inclui o território do oeste da Ucrânia, oeste da Bielorrússia e parte da Lituânia - foram submetidos a uma dura política de polonização e assimilação forçada dos residentes locais, [incluindo a] supressão de culturas étnicas e do cristianismo ortodoxo", observou Putin.
Ele lembrou que uma política tão agressiva acabou para a Polónia com a perda da independência nacional e do estado em 1939, que mais tarde foram restaurados "em grande parte graças à União Soviética". Além disso, "os territórios ocidentais da atual Polónia foram um presente de Stalin aos polacos. Nossos amigos em Varsóvia esqueceram-se disso? Vamos recordar-lhes", acrescentou 
o líder russo. Facebook de A. Abreu

2) TRIUNFO DA "NOVA EUROPA"
Viriato Soromenho Marques
O futuro de Portugal está umbilicalmente ligado ao destino, semeado de incertezas e riscos, da União Europeia. Gostaria de propor três ideias para a reflexão dos leitores.
Primeira ideia: a guerra entre a Rússia e uma Ucrânia apoiada pela OTAN, veio não só enfraquecer abissalmente o lugar, real e simbólico, da UE na política internacional, como contribuir para um vasto redesenhar da relação de forças entre os Estados-membros dentro da UE. A guerra provocou uma acelerada militarização da agenda europeia (à custa de políticas ambientais, climáticas e sociais) e uma total subordinação da quase totalidade dos países europeus à voz de comando dos EUA. 

John J. Mearsheimer, o lúcido e corajoso herdeiro de Hans Morgenthau na Universidade de Chicago, escreveu recentemente que "os aliados europeus recebem as suas ordens de marcha de Washington quando se trata da Ucrânia". 

A atual militarização europeia não tem qualquer relação com o reacender dos esforços próprios para constituir uma Europa da Defesa, na linha da malograda Comunidade Europeia de Defesa (1952-1954) ou da desaparecida União da Europa Ocidental (criada em 1955).

A militarização em curso permite-nos passar à segunda ideia: a parceria imaginária entre as duas potências, EUA e UE, deu lugar a uma relação de clara vassalagem da segunda perante a primeira. Na verdade, tanto Biden como Trump exigem uma defesa europeia conformada ao quadro exclusivo da OTAN, devendo os países subir o orçamento da defesa para 2% do PIB, ou preferivelmente mais. O governo da coligação semáforo, que hoje se senta em Berlim, deu o exemplo. Mal a guerra começou, Scholz fez aprovar uma lei especial de meios de 100 mil milhões de euros (o dobro do orçamento militar germânico médio dos últimos anos). 

Um exemplo da sua aplicação: os aviões de combate Tornado, da Força Aérea (nascidos de uma parceria entre Itália, Reino Unido e Alemanha), vão ser substituídos por uma generosa encomenda à Lockheed Martin de 35 aparelhos F-35 Lightning II. Basta consultar as compras europeias em curso para perceber como o "complexo militar-industrial" -- que o presidente Eisenhower denunciava no seu discurso de despedida (17 01 1961) como um perigo para a democracia estadunidense -- é hoje um feroz ator global.

O domínio dos EUA sobre a UE é vasto e poroso. Há uma semana, Ursula von der Leyen tentou impingir como economista-chefe da DG da Concorrência, uma académica dos EUA, Fiona Scott Morton, que já havia desempenhado funções num governo de Obama. Se tivermos em consideração o impacto negativo na indústria europeia causado pela recente legislação protecionista de Washington, com apoios diretos às empresas no setor das energias renováveis (desde que as aquisições sejam feitas a empresas sediadas nos EUA), ficamos perplexos por esta insólita proposta da presidente da CE. Perante protestos no PE e de alguns ministros franceses, Scott Morton, sensatamente, recusou o convite.

Terceira e última ideia: politicamente estamos a assistir à derrota da Velha Europa, assim batizada por Donald Rumsfeld em março de 2003, liderada por Paris e Berlim, que teve a ousadia de não ser cúmplice da invasão do Iraque pelos EUA e aliados de ocasião. Hoje, com a França em convulsão e a Alemanha em rota declinante, o centro de gravidade vai para Leste, tendo a desafiante Polónia como campeã do atlantismo. É nesta inóspita e volátil União que vamos habitar, se, entretanto, a guerra não virar o tabuleiro da história mundial.

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