Maj General Carlos Branco
Apesar das reticências em o admitir, tanto por Kiev como pelas chancelarias europeias, a guerra na Ucrânia só terminará quando Kiev mostrar disponibilidade para entrar em conversações com Moscovo, aceitar fazer concessões territoriais e adotar um estatuto de neutralidade estratégica semelhante àquele promovido pelo presidente Yanukovych, em 2010, uma inevitabilidade que começa aparentemente a fazer caminho e a impor-se. Mas será mesmo assim?
Para se encontrar uma resposta aceitável à pergunta há que compreender as inconsistências no discurso de Kiev relativamente à sua disponibilidade, manifestada em várias ocasiões, para conversar com Moscovo. Para a aparente abertura de Kiev ao diálogo com o Kremlin terão contribuído, sem qualquer dúvida, as dificuldades cada vez maiores de o Ocidente apoiar o seu esforço de guerra; mesmo excluindo do cálculo estratégico ucraniano a eventual vitória de Donald Trump nas eleições presidenciais norte-americanas.
Como deixou escapar a Representante Especial dos EUA para a recuperação económica da Ucrânia, Penny Pritzer, vai sendo cada vez mais difícil ao governo norte-americano encontrar financiamento para apoiar Kiev. No mesmo sentido, o jornal “Die Welt” chamou à atenção para o facto de os aliados não se encontrarem em condições para aumentar o fornecimento de armamento à Ucrânia. Parece indiscutível a incapacidade de os europeus poderem colmatar a eventual redução do apoio norte-americano.
Para esta mudança de discurso contribuíram certamente muitos outros fatores, como sejam os avanços russos no terreno – que começam a ser significativos – e a incapacidade de lhes fazer frente, e o desespero causado pela falta de combatentes.
A mobilização forçada abriu feridas difíceis de sarar na coesão social ucraniana, tendo levado a levantamentos populares, curiosamente em cidades situadas na Volínia, na parte ocidental do país, o berço do nazismo ucraniano. A deserção assumiu números avassaladores, tendo os 30 mil casos registados nos primeiros seis meses de 2024 superado largamente os valores registados em todo o ano de 2023.
A isto poderíamos adicionar muitos outros fatores. A situação económica degrada-se a cada dia que passa. As agências de rating atribuíram à Ucrânia a classificação de “C”, o que significa quase incumprimento, ou seja, foi iniciado um processo de incumprimento pelo facto da capacidade de pagamento se encontrar irrevogavelmente comprometida.
A conjugação de todos estes elementos levou Kiev a condescender, e a permitir magnanimamente a presença de um representante da Rússia numa anunciada cimeira de paz a ter lugar, eventualmente, no final deste ano. Tendo como pano de fundo futuras conversações com Moscovo, o ministro dos Negócios Estrangeiros ucraniano, Dmitry Kuleba, numa intensa azáfama diplomática, deslocou-se à China e reuniu-se em Guangzhou com o seu homologo Wang Yi. Kuleba usou este encontro para assinalar a disponibilidade ucraniana para entabular conversações diretamente com a Rússia, não obstante ter alterado posteriormente o discurso após chegar a Kiev.
Segundo Kuleba, a China aproximou-se das posições de Kiev. A infelicidade deste tipo de declarações é reveladora da incapacidade de a elite ucraniana entender o que se passa à sua volta. Não percebeu ainda que não é o centro do mundo e que é descartável. A sua capacidade para influenciar Washington não é comparável à de Netanyahu, que até se pode dar ao luxo de ser ingrato, recuperando as palavras de Biden na sequência da conversa telefónica tida entre ambos.
Ao mesmo tempo que fala em paz, Zelensky também fala em guerra. Não perdeu ainda a esperança de infligir uma derrota militar significativa aos russos. Para isso, e apesar da dificuldade em as equipar e armar, está a preparar 14 novas brigadas. Entretanto, o CEMGFA ucraniano, o general Oleksandr Syrsky descaiu-se dizendo que foi forçado a utilizar algumas dessas unidades para reforçar as unidades em Volchansk e na frente de Pokrovsk.
Infantilmente, Zelensky continua a insistir no armamento maravilha que vai mudar o curso da guerra. A sua crença reside agora na dezena de F-16 que já terão chegado à Ucrânia, e que replicarão os inacreditáveis feitos do “Fantasma de Kiev”. Talvez influenciado pela derradeira e heroica carga a cavalo do que restava dos samurais contra uma barragem de metralhadoras do Exército japonês, protagonizada por Tom Cruise no filme “O Último Samurai”, Zelensky prepara-se agora para o seu último fôlego.
No meio do desnorte, não será de descartar mais uma aventura militar que venha a envolver as hostes ucranianas numa ofensiva final, muito provavelmente ainda este ano e antes da “conferência de paz” promovida por Kiev e pelos seus patrocinadores, convicto de que esmagará os russos e se apresentará na referida conferência na mó de cima, e em condições de lhes impor os termos da paz, fazendo-se passar por vencedor. Não deixa de ser insólito como é que o presidente de um país, com as suas forças a perder diariamente terreno e o país em ruínas, lucubre nestes devaneios ficcionais.
Segundo os rumores que correm, Kiev teria reformulado o seu objetivo estratégico. Em vez da recuperação total e completa dos territórios na posse dos russos, a preocupação seria agora apoderar-se da central nuclear de Zaporizia e aí apostar todas as fichas canalizando o que resta do seu potencial de combate, num último esforço, numa última oportunidade de obter uma posição negocial favorável. Isso explica a temporalidade das conversações com o Kremlin – só após este último confronto, que não terá lugar antes do outono. A jogada é extremamente arriscada. O falhanço conduzirá ao total colapso das forças armadas ucranianas, ditando o fim do regime ucraniano instaurado pelo golpe de estado em Maidan.
Por acreditar ser ainda possível impor aos russos os termos da paz, o lado ucraniano não se encontra próximo do designado impasse doloroso, uma condição indispensável para os litigantes se sentarem à mesa das negociações, o que poderá acontecer apenas no final deste ano. Por isso, a mudança na linguagem de Zelensky sobre conversações com Moscovo não é genuína, é um fingimento, um gesto de simpatia para aliviar a pressão a que começa a ser sujeito.
O caso ucraniano traz-me à memória o conflito entre a Finlândia e a União Soviética, em 1940, com a derrota e a cedência de território por parte da Finlândia. O discurso do comandante das forças armadas finlandesas, o general Carl Gustaf Mannerheim aos seus soldados, no momento da derrota, é incontornável. Zelensky devia lê-lo.
Mannerheim reconheceu que o resultado desfavorável obtido pela Finlândia resultou da valiosa promessa de assistência que as potências ocidentais fizeram e não concretizaram; e que há circunstâncias em que tem de se fazer a paz, mesmo em termos desfavoráveis. A imaturidade política dos líderes ucranianos não lhes permite entenderem isto. Por isso, o seu futuro pode não andar distante daquilo que aconteceu aos samurais.
Sem comentários:
Enviar um comentário